O Não Adeus a Ricardo Serrano

Nosso amigo Ricardo Serrano saiu à francesa. Não deu aviso prévio, não quis incomodar sua tribo com despedidas ou ritos sociais chatos, apenas caiu fora, deixando no vácuo a expectativa de quando seria o nosso próximo encontro.

Ricardo agora ficará povoando nossa memória para sempre, compartilhando conosco seu espírito de anjo boêmio, presente em cada acorde de violão que sustente melodias de Chico Buarque, em cada som automotivo de porta de boteco que execute Beatles, em cada música de Caetano Veloso, seu tropicalista predileto, que nos entre pelos ouvidos naqueles momentos especiais das nossas vidas.

Como se diz por aí, Ricardo era “casa cheia”. Imperdível, inteligente, divertido, leal, cúmplice, amoroso e outros adjetivos que nunca chegarão à altura da descrição exata da sua forma de ser. Era sempre bom encontrar com ele no Boteco de Bahia, subindo ou descendo a pé a Rua Alagoinhas, no Banco, seu ambiente de trabalho, ou lá no Pelourinho, onde foi uma figura ímpar do Rio Vermelho adotada por alguns malucos beleza locais.

Figura da noite tanto quanto do dia, Ricardo foi nosso correspondente nas performances ao vivo de Chico Buarque e Paul McCartney pelo Brasil afora, cujos shows ele não perdia e nos trazia as pitorescas notícias das viagens, como daquela vez em que um motorista de taxi de Recife emprestou grana para ele comprar o ingresso do espetáculo de Paul, que ele já havia visto na noite anterior, mas porque perdeu o voo de volta para Salvador ficou em Recife, e resolveu rever o ídolo em cima da hora, sem a imediata cobertura financeira para concretizar o desejo. Dia seguinte o taxista foi ao hotel, e além de receber o valor devido, foi agraciado com um brinde, uma camisa para os passeios de domingo, ato que selou a nova amizade entre o cliente eventual e o fornecedor inusitado. Essa história só poderia acontecer com Ricardo, astral como esse não se encontra em qualquer esquina.

Tive o privilégio de ver Ricardo ao violão, e Olivinha, sua companheira, soltando a voz em belas canções em farras que fizemos juntos; de tocar e cantar com ele músicas de Caymmi pela madrugada no Pelô; de acompanhar os resultados em geral folclóricos, mas nem sempre bem aceitos pelos mais conservadores, de suas escapadas etílicas com o eterno companheiro Lucas; de em alguns momentos me sentir plenamente integrado à sua tradicional turma do Rio Vermelho, ao lado de Chiquita, Ernestão e outros mais chegados, quando ele abria a porta de sua casa, e nos recebia na sequência das festas iniciadas nos botecos de sempre.

Privilégio marcante foi também ter participado dos festejos das bodas do seu casamento com Olivinha, ainda hoje ainda me soa na lembrança a música que embalou o ápice do encontro, a emblemática “Eu Sei que Vou te Amar”, divinamente executada no sax do nosso amigo Luciano. Privilégio mesmo foi ter sido querido por Ricardo, ter feito parte do rol daqueles de quem ele gostava explicitamente, fazendo questão de tornar público seu sentimento sempre que lhe dava vontade. Mas todos esses privilégios, evidentemente não foram só meus. Apenas ponho no papel algo vivenciado pelos seus amigos próximos, na vã tentativa de ocupar o vazio que toma conta de todos nós neste momento.

Ricardo nunca foi de esperar pelo dia seguinte. Contrapondo a máxima de Nelson Rodrigues, Serrano foi a unanimidade que deu certo. Sua passagem por aqui foi intensa e bem vivida, dedicada prazerosamente à sua companheira Olívia e à filha Bebel, seu único rebento e orgulho de pai coruja. Ele distribuiu fartamente seu amor ao próximo, missão em geral afeita aos espíritos libertos, no caso dele o tal do anjo boêmio que deu liga à nossa confraria, e nos ensinou que o direito à alegria deve ser reivindicação prioritária na pauta de negociações que fazemos cotidianamente com os deuses que administram a disponibilidade do nosso tempo neste planeta. Assim como ele não parou para nos dar adeus, também não devemos ficar muito preocupados com despedidas incompatíveis com sua energia pura. O que não podemos esquecer é que nós não escolhemos os nossos anjos companheiros. São eles que nos escolhem. Que bom que fomos escolhidos por Ricardo.

Santos Machado

Salvador, 22/10/2012