O MUNDO DE RUI

No canto mais escuro do pátio, agachado, sozinho, quase nu e sujo ainda da diarréia brava que teve ontem à noite, Lourival olha para a lua enorme no meio do céu e vê Saturno. Às vezes é Júpiter, mas hoje é Saturno. E ele já decidiu: quer ir até lá para se encontrar com Irene, sua namorada, que um dia lhe disse: “Quando eu morrer, vou morar em Saturno”. E ela morreu. Não sei como ele ficou sabendo, porque ninguém o visita aqui. Talvez tenha adivinhado. Não sei. O fato é que ele quer ir para Saturno de qualquer jeito. Fica repetindo sem parar: “Vou até aí te visitar, minha flor de maracujá”.

Lourival tem trinta e oito anos. Chegou aqui quando tinha trinta e quatro, preso numa camisa de força, todo arrebentado, os braços, pulsos e pernas cheios de picadas de agulha, a cabeça tremendo, os olhos esbugalhados de medo.

Mas ele não ficou assim da noite para o dia não. Por muito tempo foi considerado quase normal. A piora veio só depois que ele largou o emprego e começou a andar pela cidade o dia inteiro – ia entrando em lojas de roupas, supermercados, lanchonetes, botecos, floriculturas, livrarias, ou simplesmente andava sem rumo pelas ruas e ruelas, pelos morros e ermos solitários da velha cidade –, até que se concentrou nos velórios. Não perdia um velório. Fazia plantão na entrada, porque sabia que todo dia pelo menos um defunto era empacotado. Levava sempre um livro. Às vezes passeava pelo cemitério ali perto – ficava lendo as inscrições nos túmulos, calculando as idades dos falecidos –, às vezes se sentava no boteco da esquina e lia, bebendo café. Até que chegava o carro da funerária e ele corria para lá, para não perder a abertura do caixão. Uma vez ficou impressionado com o velório de um homem de 350 quilos. O morto tinha trinta anos de idade e era muito querido na comunidade onde vivia. Tinha uma namorada e sonhava em ser palhaço de circo. Estava tentando no SUS uma cirurgia para redução de estômago, mas a burocracia do serviço público de saúde foi maior que a força do seu coração. Teve que ser enterrado de lado, porque o caixão tinha um metro e quarenta de largura e não entrava na cova.

Parece que estão me chamando ali no pavilhão dos desesperados. Estão gritando de novo: “Rui, onde está você?”. Eu já cansei de dizer para eles que o meu nome não é Rui, e que eu estou aqui só para recolher material para o meu próximo livro, uma obra tão audaciosa e inovadora que vai romper com tudo que já foi escrito até hoje no mundo. Só não lhes digo meu verdadeiro nome para não me acharem arrogante. Mas para você eu digo, leitor: meu nome é Johann Wolfgang von Goethe, o grande, o magnífico, o maior de todos os poetas, de todos os romancistas, autor de 'Werther' e 'Fausto'...

Mas o que eles querem dessa vez? Vou usar minha espada de luz e desintegrá-los...

Estou de volta. Já me tiraram da camisa de força. Estou meio zonzo, parece que me deram uma injeção. Ainda bem que me devolveram este caderno. É a única coisa que eu tenho, meu único amigo. Fui jogado aqui porque não me enquadrava na sociedade, era diferente demais, minha família inteira me desprezava; mas fiquei foi pior, com tanto remédio, tanta solidão, tanto horror... Hoje só tenho este caderno, onde escrevo minhas coisas... Só você, caderno amigo... Só tenho você.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 09/11/2013
Código do texto: T4563551
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