Nilson – “Tio” e amigo.

Ao vê-lo no caixão com o algodão nas narinas e na boca, não o reconheci. Estava desfigurado, magro, talvez pelo sofrimento que o câncer impinge ao ser humano quando o escolhe.

Não pude conter a emoção de ver um homem que conheci tão forte e alegre há muitos anos.

Meu filho chorou no velório. Nos seus trinta e sete anos de vida, já um professor universitário, empresário, não conseguia conter as lágrimas, pois aquele homem que ali estava tinha sido na sua infância um tio, como o chamava até hoje. De consideração, sim, mas muito mais um tio do que muitos dos seus tios de direito.

- Como o tempo passou rápido, pensei.

Era um menino que respeitava todos os moradores do prédio onde vivíamos. Era querido por todos e nunca tive reclamações de nenhum vizinho com respeito a ele.

Eu era recém-casado e Nilson também. Recebemos nossos apartamentos quase na mesma época e ele tinha um filho da mesma idade do meu. Crianças pequenas morando em apartamentos um em frente ao outro, a amizade seria inevitável. Até hoje, meu filho e o Deni, filho de Nilson, são muito amigos.

No velório, Deni amparava a mãe que contivera-se até o momento que o caixão desceu para o crematório. Desabou em prantos pela perda do marido. Deni estava muito emocionado e às vezes com lágrimas nos olhos.

- Deni, eu disse, suas costas são largas e você pode muito bem aguentar a responsabilidade de cuidar agora de sua mãe que muito vai precisar. Deus vai te dar forças...

- Sei, meu tio, minhas costas são largas. Vou aguentar. (Ele também me chamava de tio).

Durante a cerimônia não pude deixar de lembrar de uma brincadeira que fiz com o Nilson (de muito mal gosto) no inicio da nossa amizade. Eu era bem jovem e sempre fui brincalhão, e por isso às vezes não media consequências.

Estavam o Deni e meu filho, ambos com cerca de seis, sete anos, brincando na minha sala e acho que minha esposa havia feito cachorro-quente para os dois como lanche.

Ao ver o chatchup tive a infeliz ideia de pregar um susto em Nilson.

Peguei o catchup e coloquei nos braços de Deni e do meu filho, fazendo escorrer como se fosse sangue.

Nilson era nesta época, técnico em enfermagem e trabalhava com isso, e naturalmente devia imaginar a gravidade de cortes nos braços, pulsos etc, ainda mais em crianças.

Combinei com as duas crianças, - que infelizmente se mostraram grandes artistas - que fingissem que haviam se ferido.

- Nilson! Me acuda! Bati na sua porta segurando os dois meninos que choravam fingidamente e quando o pobre do Nilson abriu e viu aquilo ficou verdadeiramente branco (ele era negro). Quase desmaiou.

Só dizia repetidamente: - Meu Deus, meu Deus! O que foi isso?

Quando vi a merda que eu fizera, tentei acalmá-lo, mas era tarde, ele estava muito abalado.

As crianças sorriam na sua inocência, dizendo que era brincadeira e eu tentava explicar a minha imbecilidade. Eu poderia matar meu amigo do coração naquela época. Só me perdoo, pois era bem jovem, mas foi uma brincadeira muito sacana.

Sei que ele ficou puto da vida, mas sempre foi muito polido e educado. Não me disse muito sermão. Pedi desculpas e prometi não mais brincar assim.

Mudei de casa após nove anos, viajei para Recife, fiz várias coisas, mas em todos esses anos só vi Nilson uma ou duas vezes. Sabia que meu filho o visitava já em outro bairro. Há cerca de seis anos meu filho me disse que ele estava fazendo quimioterapia para tratar um câncer.

Ontem meu filho me ligou falando da sua morte.

Durante o velório, pedi novamente minhas desculpas após tantos anos. Espero que ele não leve mágoas de mim. Nunca conversei com ele sobre isso, mas hoje me preocupo mais com certas brincadeiras.

Vá em paz meu amigo e não se esqueça dos dias que passamos juntos na nossa empreitada de criar nossos filhos da melhor forma possível, mesmo com nossa inexperiência. Foi muito boa a sua convivência e a troca de experiência muito me ajudou. Afinal, nossos filhos são hoje homens preparados para o mundo. Acho que fizemos nossa parte. Parabéns.

Só não gostei quando soube que você disse ao meu filho ainda pequeno, que Papai Noel não existia. Ai, quem ficou puto com você, fui eu. Nunca lhe disse, acho. Mas te perdoei por isso.

Tenho outras estórias dos dois meninos que cresceram juntos alguns anos, mas não dá pra contar aqui agora. Talvez em outros escritos.

Saiba que como amigo e “tio” do meu filho, sempre estarás no meu e no coração de Adrian.

Não vou dizer adeus, pois estou perto de te encontrar qualquer dia, mas até logo e encontre a paz onde estiveres.

Que Deus esteja contigo nos caminhos dessa sua nova jornada. Que Deus dê muita força para o Deni e a mãe para suportarem sua falta.

Por cá, a saudade é a prova de que o parentesco é muito mais espiritual do que consanguíneo...

10/13