Glicerina

De tão musical que nascera e logo que no trombone a boca botou, o Glicério saiu do sério. Era músico, artista, aceito em qualquer roda, dançante em qualquer pista. Adeus deu para o maçante trabalho dos teares e, farrista, saiu a procura de nuevos y buenos aires.

Se te disser que chegou à Argentina, acredita, pois de Evita aquela terra não se evita. E vai ver que graça achou, se enamorou e, por pouco não se amarrou. Pode ser que

tenha ficado só nesse Brasil - ...sem fronteiras, sem paredes..., como afirma o poeta Djalma Andrade - mas a sua música ultrapassou fronteiras da nação e da imaginação, de tão batuta que foi seu tocar.

Mas a fama não deu sossego ao nego: agradando a troiano e grego, pelas 'brahma' é que foi pego. Entregue à boemia, abandonou-o, enciumada, a sinfonia. E o beber fez a noite virar dia e do círculo vicioso e de vício só já o Glicério não saia.

Rezas, benzeções, promessas da família para que o moço se endireitasse acumulavam- e nas escrivaninhas e nos despachos dos Santos, que eram tantos e aos prantos, mas dele desistir da caneca, neca.

Até que ao cabo de muita humilhação, veio o estalo, a curá-lo. E a música, ao abandoná-lo, foi pelo ralo. Para a recordação abafar, à barulheira dos teares foi-se entregar.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 07/11/2013
Reeditado em 07/11/2013
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