RESQUÍCIO DE PERFUME            
                                             

                              Lembro vagamente de um resquício de perfume que insistia em permanecer na fronha do travesseiro e nos lençóis depois que partias. Aquilo me salvava do gosto amargo que ficava na boca depois de uma noite de espumantes incontáveis, de alegrias inomináveis, de danças indecentes, de confissões inocentes, de permissões pacientes. Eram noites em que colocávamos nossas crianças para brincar, num ambiente protegido e não havia regras nas brincadeiras. A cada dia inventava-se uma brincadeira nova e éramos extremamente criativos. Lembro de termos sido Adão e Eva, Romeu e Julieta, Sartre e Beauvoir, Henrique VIII e Ana Bolena, Sergé Gainsbourg e Jane Birkin, Marlon Brando e Maria Schneider e tantos outros, em peças de teatro que íamos improvisando às gargalhadas.
                              Sabíamos nos divertir.
                              Em outras vezes enveredávamos pelas lembranças antigas, umas tristes, outras alegres e, concentrados, ouvíamos em silêncio o que o outro tinha para contar. Sem julgamentos, sem comentários, sem conselhos. Apenas nos ouvíamos pela madrugada adentro, quando a maioria das pessoas dormia para as rotinas do dia seguinte. Nesses momentos éramos sérios, quase cúmplices da alegria ou da dor do outro. Era como se voltássemos juntos no tempo e revivêssemos como companheiros aqueles fatos tão antigos, talvez voluntariamente esquecidos, caso não estivéssemos juntos. Apenas uma vez enxuguei uma lágrima em teu rosto. Mas inúmeras vezes não contive o riso ante tua gargalhada que se espalhava pela casa toda.
                              Mas era no fim das brincadeiras, quando te aconchegavas meiga no meu abraço, é que meu corpo relaxava e, tomado de uma ternura que me aquecia o corpo todo, conseguia perceber a importância de estarmos ali. Aos poucos ia perdendo a noção dos limites de meu corpo e passava a ser, então, parte do teu corpo, parte da cama, parte do quarto, da casa, da rua, da cidade, do universo.
                              Ainda hoje lembro vagamente de um resquício de perfume que insiste em permanecer na fronha do travesseiro e nos lençóis, depois que partiste.