"a estranha solidão de rita aldebaran"
“A estranha solidão de Rita Aldebaran”
Rita Aldebaran (sobrenome originado de homenagem à estrela “aldebaran”, que fica na abóbada celeste, próximo ao aglomerado estelar da “plêiade”, no olho esquerdo da constelação de Touro), ou “ritinha”, como seus amigos mais íntimos a denominavam, era uma mulher singular.
Filha de um gaúcho militar e de uma mineira poetisa e católica fervorosa, nascera em Salvador-Ba, mas passara a infância no Rio de Janeiro-RJ e a adolescência em Fortaleza-Ce, mas se graduara na Universidade Católica do Paraná e, de forma imediatamente ulterior, fizera Mestrado e Doutorado em Engenharia Espacial em São Paulo. Em decorrência de um concurso público, fora morar em Brasília, no verdor de seus 25 anos.
Podemos dizer que era uma mulher “brasileira”, não apenas pelas inúmeras viagens e padrões culturais e domiciliares a que fora submetida; era uma mulher jovem e bela, de tez amorenada – cor de jambo “musical”, de expressivos olhos azuis e amendoados, dotada de uma compleição física que se afigurava mais adequada a uma passista de carnaval ou a uma modelo brasileira do que a uma cientista espacial. Em suma, seu rosto de tons leves e sutis, seu cabelo edulcorado em pequenas cachoeiras castanhas, seu perfil de curvas adequadamente angulosas, e sua expressiva voz roucamente gutural lhe davam enorme vantagem na seleção natural darwiniana no átimo de chamar a atenção de homens e mulheres.
Era uma gata de abalroar o trânsito e causar terremoto no quarteirão, para usar um linguajar mais coloquial.
De temperamento dócil, mas reservado e opiniático, soubera se impor perante os colegas de trabalho, passava pelo menos 15 horas por dia trabalhando em meio a um universo basicamente masculino, que a admirava e a respeitava, e de tal forma era seu procedimento que não obstante sua beleza estupefaciente, ficara amiga ou colega de esposas, namoradas e companhias eventuais de seus colegas homens, sem que nunca causasse ciúmes ou intrigas após ser conhecida pelas companheiras de seus pares laborais. Elas jamais falaram entre elas ou com seus próprios homens sobre isso, mas, no íntimo, sabiam que ela era demais para o bico deles, estava em outro patamar na escala social do amor, e não havia perigo de dar certo qualquer possibilidade de investida da parte de nenhum destes – não que estes não o quisessem, mas sabiam derrotados de antanho.
No entanto, os anos foram se passando e nada de se ver Ritinha com alguém.
Aqui ou ali saltitava uma informação vaga: - Ela viajou na páscoa com um primo de minha amiga que é médico ginecologista e a conheceu no consultório; - Ela passou as férias com o advogado da empresa em Búzios-RJ, após passar o natal em Garopaba -SC, com sua família..., mas já no carnaval e páscoa ficara voluntariamente no plantão do serviço, liberando seus colegas para descansar com as respectivas famílias; - Ela foi vista por alguém, não me lembro o nome, que me falou que ela deu uns beijos e uns amassos em um Russo da Embaixada Ucraniana em uma boate de Brasília; - Ela viajou com uma colega de meu cunhado para o carnaval na Bahia e “barbarizou” no camarote da cerveja tal... e etc.
No entanto, nada de aparecer socialmente com sua cara metade, nem reclamar, nem desesperar de sua estranha solidão acompanhante de solteirice brejeira. Muito menos aceitar passivamente todas as frustradas tentativas de intermediação amorosa dos alcoviteiros plantonistas mais pertinazes - esta bizarra mania dos amigos brasileiros de não deixar quieto o que nunca deixou de estar irrequieto...
Até que um dia, de repente, no dia em que ia completar 32 anos, finalmente convidou todos os seus colegas de trabalho e respectivas para uma pequena festa no salão social de seu apartamento em Àguas Claras-DF, o agora já famoso e charmoso bairro residido principalmente por profissionais liberais e servidores públicos concursados que moram em Brasília, mas vieram de outras plagas.
Neste dia, todos notaram uma presença insólita no local, e, para a surpresa geral, antes que o estranho no ninho pudesse ser interpelado, Ritinha pediu a palavra e cortou o silêncio com uma única frase: - o melhor presente de aniversário que recebi em minha vida foi a felicidade de conhecer e me apaixonar pelo Edirvânio, sem sombra de dúvidas, o homem da minha vida, o companheiro sereno e forte que sempre esperei e procurei na selva árida desta vida louca de todos nós.
E em meio à continuidade silenciosa e verazmente congelada do ambiente, se aninhou no dorso robusto e avantajado de seu amado, celeremente meneando o rosto para camuflar os seus resplandecentes olhos azuis em meio aos cachinhos castanhos de sua fronte, que caprichosamente seguiam a gravidade para enodoar as breves e intensas lágrimas de emoção vertidas naquele momento de marcante gáudio pessoal.
E a festa continuou, com todos os salamaleques e tapinhas efusivos cabíveis a um momento tão especial, o que também significou manter recônditos todos os tipos de olhares dos presentes: alguns de incredulidade, outros de bazófia, muitos de inveja, e alguns poucos de asco discriminatório. Até que, bem baixinho, o Romeu Batista, o engenheiro-colega mais assumidamente candidato a morador do coração de Ritinha, comentou desolado com Bentinho Maciel, o mais platonicamente admirador da musa: - Pô, ela vai casar com o vigilante da Agência Espacial... Que será de especial que ele tem, vai ver tomou banho de talco doce da mãe quando era criança...!!!!
No fundo, tal indagação permaneceu no ar como espectro, mesmo depois do casório e do nascimento dos três filhos do casal, que puxaram a mãe em carisma e beleza.
Alguns anos depois, João Serôdio, amigo de infância de Ritinha, veio da Califórnia-EUA passar as férias na residência do casal em Brasília-DF, e, em um momento em que ambos estavam sozinhos, teve coragem de fazer a pergunta que ninguém houvera audazmente pronunciar: qual o segredo do Edirvânio, que conquistou inapelavelmente a diva.
A resposta de Ritinha foi longa e definitiva:
- João, em primeiro lugar, preciso mencionar que sou filha de gaúcho e mineira, duas pessoas com culturas já bem marcantes e distintas entre si, e que morei ainda no Rio de Janeiro, no Nordeste e em Brasília. Isso pôde me dar uma visão mais holística do fenômeno relacional homem-mulher. Pude ver as várias maneiras pelas quais as mulheres são tratadas em nosso país, e isso por si só já me deu melhores critérios para escolher adequadamente. Posso dizer com segurança que os homens brasileiros ainda estão aparvalhados com a ascensão meteórica das mulheres brasileiras, eles ainda não encontraram sua posição tática no time, para usar uma metáfora futebolística... Veja bem, meu avô materno era um pinguço, a cachaça era mais relevante que a minha avó, que sofreu muito com isso; além disso, era um boêmio inveterado, tocador de cavaquinho em roda de samba e mulherengo incorrigível... Por sua vez, meu avô paterno simplesmente era um troglodita que, embora não bebericasse e nem chegasse em casa com marcas feministas exóticas, frequentemente se achava no direito de espancar a minha avó, coitada, minhonzinha, que não tinha como reagir às gratuitas agressões físicas que simplesmente aconteciam na periodicidade da lua cheia. Meu pai não bebia e nem batia em minha mãe, mas era muito seco e rude, queria fazer a família marchar em ordem unida, era um homem bom que não amava e nem se deixava amar; eu o amava muito, que saudades dele, mas esses aspectos oprimiram muito a individualidade de minha mãe, que depois de seu falecimento, finalmente publicou suas poesias e pôde ser um pouco ela mesma. Em suma, tive em casa três paradigmas marcantes que já me indicaram o caminho do que eu não queria de jeito nenhum, na hora de escolher meu futuro companheiro de vida.
Nisso, Ritinha, apontou para o céu, como se a agradecer sua sorte em ser tão cultural e humanamente singular, e prosseguiu: - toda essa cultura familiar, as conversas que tive com minha mãe e minhas avós, me ajudaram a prematuramente aprender a me defender das cantadas e investidas, pois, como sempre fui muito bonita, sempre chamei a atenção dos homens e precisei ser sempre muito atenta e seletiva na hora de me abrir a possíveis tentativas amorosas. Percebi logo que era fácil distinguir os homens cafajestes, os metidos a conquistadores, os inseguros, os neuróticos, os ciumentos, os desvairados, os imaturos, e principalmente aqueles que me procuravam apenas como competidores à procura de um troféu, pois sempre tive a percepção de que nenhuma beleza dura para sempre, e se isso fosse a virtude fundamental que me levasse a ser buscada, no futuro ou no mais breve presente, eu terminaria magoada e triste, e é melhor evitar certos dissabores certos.
Nesse ínterim, deu uma piscadela para João, e perdurou sua história pessoal.
- Claro que nunca fui santa, é óbvio também que muitas vezes me apaixonei e não deu certo, mas jamais perdi a certeza íntima de que um dia encontraria a pessoa que procurava, como vi tantas vezes amigas mais impacientes fazerem, quando inclusive estavam prestes a finalizar seu processo pessoal de evolução amorosa. Nunca fiquei com ninguém por carência ou desespero, sempre pelo sentimento que me arrebatou, e por isso mesmo nunca descartei uma possibilidade apenas por cansaço, egolatria ou arrogância feminil. No entanto, sempre algo não terminava da maneira como imaginava, nem sempre por minha culpa. Já o Edirvânio, apesar de ter apenas o segundo grau, quando o conheci, estava começando a sua faculdade de filosofia, com bolsa paga pelo Governo, tinha uma família encantadora, era um batalhador, fiel e incansável, e apesar de não ser o homem mais belo do mundo tinha “cara de homem”, e era de uma nobreza e beleza espiritual que tive conhecimento no dia em que descobri incrédula que ele costumava ir semanalmente ao mesmo instituto de proteção a idosos que eu ia há vários anos, mas nunca nos encontramos porque ele ia às segundas, dia de sua folga, e eu nos sábados ou nos domingos. Um domingo, ele havia trocado de plantão e resolveu levar um presente a um senhor com Alzheimer, e que era justamente o mesmo que eu acompanhava fazia vários meses. Isso me chamou a atenção, adicionando-se aos olhares furtivos, discretos e sempre muito elogiosos que ele sempre me dirigia quando eu passava por seu setor na entrada da Agência Espacial, você sabe que uma mulher sempre sabe quando está sendo observada por um homem, mesmo camuflado. Fomos tomar um café e as coisas aconteceram naturalmente, no tempo apropriado, como todo fruto amadurecido vai de encontro à Terra para novamente fecundá-la...
E, finalmente, arrematou:
- Na verdade, João, em minha vida, eu até já havia conhecido vários homens interessantes e que certamente seriam ótimos maridos para mim, mas eles nunca tiveram a sorte de descobrir o meu segredo mais íntimo...
Nesse ponto, João, mais curioso do que uma amiga mulher, já sem lograr disfarçar sua ansiedade, a interrompeu: - que segredo foi esse que o Edirvânio descobriu?
Ritinha riu e finalmente revelou para a primeira pessoa na Terra porque sempre teve certeza de que seu amado era o que sempre procurara:
- João, quando eu tinha oito anos de idade, eu tive um sonho recorrente, que se repetiu por oito longas noites. Eu conhecia um príncipe valente e nobre, que após três olhares, um de iniciativa minha, um de iniciativa dele e um nosso, me pegava pela mão, e, fitando os meus olhos, como que encantado com a beleza de minha alma, refletida em minhas íris, sem nenhuma palavra, colocava delicadamente a minha mão em seu peito, para que sentisse o pulsar de seu coração, emocionado em me sentir tão perto. Apenas isso ele fazia, e ficava a me contemplar, a esperar pacientemente que eu me entregasse, dirigindo-me um olhar que não era de submissão, de autoridade ou de dúvida, mas de determinação tranquila e segura. A verdade é que o Edirvânio foi o único homem que, imediatamente antes de me beijar a primeira vez, cumpriu rigorosamente o meu ritual secreto de menina, o meu mais bem guardado segredo... Senti ali que eu havia sido desvendada em meu enigma de esfinge, e já estava pronta para devorar e ser devorada... Ele é o meu príncipe, e ali eu tive a certeza de que eu tanto esperei e superei os malogros anteriores porque o mundo já havia me destinado um destino feliz que finalmente se descortinara...
Moral da história: a mulher foi a última obra do criador, e por isso, é a mais angelical e celeste das criaturas; mas, quando o Arquiteto Inefável cria uma mulher, qualquer uma, tranca seu coração e esconde a chave em algum lugar do universo. Quem encontrar a chave será dono do mais valioso tesouro do mundo: a alma e a essência de uma mulher de verdade.
Por Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto.
Criciúma, 16 de junho de 2013.
Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto