Memórias de Curumim
Quando de Monte Alegre com muito de Central e centrado, passando por moeda, segurando no gol da vida suas próprias memórias de “mininu” custoso, fanático e sofrido por ovo e misturas de roça, filho das doçuras severas de Amélia e das ranhetices joaquinianas do grotão, pintando carro com bomba de matar mosquito enquanto a bola de borracha não chegava para onze ou doze, quem sabe outros tantos, onde mais que afilhado e irmão era das donizéticas casas de oliveiras bondades , fazendo peripécias, com a nata inteligência de quem um dia sentou nos bancos escolares de ouros e pretos para em algum tempo em outro banco ficar, vagueando e sonhando em platônicas lambretas uberlandinas, adquirindo a habilidade marota dos tacos certeiros da vida, na rigidez dos idos em que nalva era apenas um rostinho bonito internado ao som de orações, robertos, niltons e botinhas sem meia, driblou desbravadoras tavicas e doutoras carecas, mais que aventais brancos da ditadura católica, com apoio restrito e irrestritos de gercinas e osmares ou com rubicas balinhas, para finalmente se encontrar com a meiguice vinda de Patrimônio do Rio do Peixe, que um dia pediu socorro pelo vestido e pela alma presos nas telas protetoras de correntes e bicicletas, com as bochechas decididas e tímidas por peripécias eneidianas, com a fibra adquirida no jovem exílio de criança, eis que surge então, deste encontro de destinos mais que certeiro, nas barrancas ritinianas do caminho da cachoeira, um curumim gitim, que nem tão pequeno assim o era, fortificado ainda pelo leite afrogeneroso, muito mais uai apesar de sô, começando então seu caminho de descobertas nas veredas, cerrados, matas, “corgos” e igarapés, nas asas de novos concretos e nas águas, sempre nas águas, de corixos pantaneiros e labirintos do saber, conhecer, tão somente de viver, em um Brasil de meninos, curumins e cunhantãs, guris, garotos e piás, que emergem das buchudas ternas de nossa terra Matriz Dei.
No principio, e qual será tal princípio? Será em formiguinhas vistas do alto de um carrinho de vagas lembranças de bebê? Ou em um som bastante peculiar, de saudosos e saudosistas, em “que tudo mais vá pro inferno” mas mantenha no paraíso as lembranças juvenis? Talvez em erosões e buracos de enxurrada, ou ainda na vontade kombistica de seus quase 45 anos de dirigir, como um guarda roupas ambulante de mascate, o símbolo dos anos dourados de paz e amor, com seu grande emblema frontal, emblemático das mudanças ideológicas, ou em rodinhas de sonhos torneadas em madeira de lei e tiradas de uma bicicleta mágica que vagueia equilibrista pela praça de uma simpática igrejinha que ainda resiste aos ventos e preces do tempo, onde a comunhão do mundo, do menino e de Deus se fez. O princípio está na alma, impregnado nos ossos e na memória, nos revólveres quebrados do tímido espoleta, entre selos, flâmulas, caixas de lápis, trilhos desmontados e locomotivas perdidas, moedas e notas já passadas por mãos mil, nos jipinhos de pedais azuis puídos e adeodáticos, nos quintais de galinheiros e milharais, nas cisternas que levam a imaginação em viagens ao centro da terra, nas pretas e brancas imagens em cores de cacos e garibaldes, nas esperadas e elásticas figurinhas trocadas, nos pés de coelho e goiabas de taturanas bezerras e em suas varas calombeiras e educativas, na esportiva que um dia quase foi zebra, no barbeiro e nos centavos domingueiros e cinematográficos, na manteiga e no rádio, no guaraná de maçã e pães com salame, nas vitrolas ofuscantes e toca-fitas variantes, nas cadernetas de muitas notas e gostosuras dos balcões paulinos, na carroça e no litro de leite derramado em seu último doce suspiro pela calçada, na alegria de quem foi e voltou mais de uma vez combiando pra escola, ora branca e pura em seu condutor de hábitos e paramentos, ora escalafobeticamente velha e generosamente negra, desprovida de portas e de travas, mas repleta de infância, de queimadas, do amigo que na ponte não voltou, mas ficou vivo no som de baquetas e tarol.
E se o princípio foi por aí, escutando causos de velhas com peles de cores escravas, mas livres, cardando e fiando enquanto pitavam seus cachimbos de saci, e o menino, ah! o menino ... contando outros tantos de mentira, comendo couve de carminhas e ingás de bodoques e neins tirados das cercas de bambus, encabulando-se com simbologias caveirísticas de irmandades do bem, tomando banho em tanques e bacias onde a infância se purificou e continuou concebida e plena de sabores, texturas, coloridos e sensações.
Nas fileiras do saber, as carteiras são outras, que não as do menino, mas presentes, surradas e antigas de escola de mãe que ensina, uns atrás de outros, juntos e separados, jamais segregados, em merendas saborosas dos tempos em que madalenas nunca precisam ser culpadas ou arrependidas, quando a lâmina fria e afiada apenas aponta o lápis. Nos carros alegóricos das festas de setembros, confinados em galpões divertidos, para nas ruas, desfilarem multicores.
Piqueniques ao ar livre das variadas paisagens e à beira de rios, mais uma vez e sempre, a água, prana que purifica. Um grande churrasco, de muitas novilhas e temperos, cujo aroma ainda se encontra gravado na mente, assim como o gosto das emulsões e elixires dos males e perrengues da infância, que dela não saem, mesmo que se queira. A pescaria de muitos lambaris que não foi, ficou. Trouxinhas abiscoitadas de crocantes goiabas verdes e suas temidas taturanas. Um pateta mal desenhado, na verdade, apenas cópia aplaudida. Nos pés e cabeças de laranja lima, de onde bernes cabeludos foram derrubados a golpes de limoeiro e beliscões, numa sátira mazzarópica, quando pular de guarda chuva é possível, mas dolorido.
Aos 9 anos, já com um espírito aventureiro incutido no ser, sempre na luta contra as barreiras da timidez, louco pelos mares de janeiros ou ilhas de madeira em pranchas de isopor e esteiras, armado de estilingue e gibis, marcado na pele pelas inúmeras vezes que foi costurado escondido nas bicas e degraus do aprender, lança seu primeiro voo com asas de motores, sob o comando da base familiar, tendo como copiloto seu fiel e implicante escudeiro, pelos verdes mapas riscados de rios do fascinante norte amazônico, quando deixa para trás o menino e se torna curumim ao pousar nas margens direita do Madeira, onde o estranho é recebido por seus iguais, munidos de baladeiras nos dedos, com suas pipas de coloridos azuis e encarnados, de rabiolas e talos de palmeiras, discaindo e travando batalhas em céus realmente abertos, peões entalhados no puro cerne tropical bicando seus oponentes, “bilocas de gude” em seus turites, dinheiros imaginários e fictícios na prática de históricos escambos, canoas fascinantes deslizando por águas caudalosas com a força do remo de simples e destemidos Raimundos.
O curumim agora sonha com saudades de suas minas da pouca idade, mas as descobertas diárias aos poucos as rebatem, deixando em dormência dias muito bons em virtude de outros melhores. As maravilhas da natureza são realmente encantadoras e as descobertas de novos costumes e possibilidades modificam o ser - além da pele morena, do pensar, do falar de pessoas terceiras e intrigantes dizeres, quase dialéticos.
Os contrastes, desapercebidamente presentes, parecem não existir, para só mais tarde se tornarem claros, quando o homem já não pensa mais como o curumim, mas ainda sente o que este sentiu.
Do tucumã ao avião, do bacurau a barnabés e velhas embaixo da cama, de náufragos fantasmas e voadores, de violões ao som de um chapéu de couro e suas asas brancas, de lemes que orientam os que chegam e os que saem, trazendo nos cascos pintados com nomes dádivas de outras margens e paragens. Do fascínio do sisal em massas de tábuas calafetadas ao ligar pesado de motores e hélices, do porto ao aeroporto, da falta sem importância da televisão às lendas mirabolantes e verdadeiras de anacondas, padres e mulas sem cabeça, que por lá nunca marcharam como as bandeirinhas flamejantes em tempos de comemorações.
Da piscina ao igarapé, da rede ao anzol, das grimpas das mangueiras ao cabo aço da rampa, dos pés de pato ao manicoré, da escadaria ao eletrônico, da malaria ao remédio, do baré ao açaí, do cianídrico à brava tapioca, do guaraná ao pouco chocolate e muito pó de leite, de um inverno que sempre é calor, de um telefone só que nunca foi solitário, de tanjal e jabaranas, de chuvas marcadas e nuvens passageiras, de roupas molhadas pra serem dormidas, das peles morenas e caboclas do dialeto ao branco sardento do estrangeiro que a língua enrola, e enrola a todos, tolos de ouro. De motocas várias e carro algum ou nenhum, de uma zona livre e franca para tudo, de pepsi-colas vencidas mas sem validade, de voadeiras e voadores, de jacarés multicores no chuveiro, de elizeus, toinhos, waldomiros, agedices, beneditas, doutores de vereditos manoéis e marias, de notícias esquecidas em um alto falante ligado no vai e vem da praça, do posto de gasolina em latões do armazém, dos rodos de pés de panos descalços arrastados nos mármores brancos aos facões afiados que deitam a grama alta. Da democracia dos índios com vontades de pelés, de rebocados e rebocadores, do escalpo de sapecas e custosos espremidos, dos croquetes de macaxeira com molho de pimentas educandárias, de tacacás nunca tomados (talvez um dia ainda tome), de carapanãs e maleitas suadas das beiras da princesinha do madeira, de toras e jangadas, de juta, bananas, melancias e motosserras machadas, de bolas ao gol mal chutadas e bolas de borracha esfumaçadas por seringueiros, amontoadas nas portas das vendas, do sossego às relias de arquibancadas, de helicópteros, tendas, fardas e vacinas, de onças acuadas por seus caçadores caçados, da mata frondosa que prende, castiga e ensina o forasteiro por dias termináveis, de ilhas que aparecem e desaparecem, às vezes para sempre, onde o curumim sempre estará, da linha de cerol na correnteza que leva a pipa para o perto do longe, das barrancas e suas faces camaleônicas e devassadas, onde o menino, nesta hora distante de curumim, culpas também teve com seu velho e escangalhado patinete com latão na cria de ratazanas bem alimentadas.
De quermesses e prendas de prendada matriz aos temores de um bumba meu boi assustado, com miolos ao seu encalço nas pacatas ruas cimentadas. Dos cariocas perdidos e meninas quase inocentes em perfumes de alfazema feito cor de cupuaçu, dos banhos de rio e candirus nunca solteiros, de trilhas pela mata e cartuchos disparados, de “parabólica”mara que não dava a volta ao mundo, tão pouco na televisão de projetados chuviscos e slides. De estripulias televisivas de shazan e xerife para brincadeiras e contos do além da meia noite. De mergulhos, atrapalhando lavadeiras e mandiocas afundadas em farinha d'água, da farmácia com bigode e suspensórios de chaplin, de doutores e antonios, de ruas com movimento sem carros, de curiós sumidos, barrigudos e periquitos adestrados, de luizes, arindaus e colós, da pesca farta de barcos sem varas, de sardinhas a subir escadas de madeiras nas costas do alegre sofredor, fugindo de lendários botos cor de rosa mas arrebatadas por tarrafas e redes certeiras até caírem assadas em latas de marmelo, sobre grossa buba amarela, das moças encantadas, donde apenas a espinha e o filho restaria. De altas palafitas de madeira na simplicidade da falta de paredes, das redes trançadas e poucos camarotes, de tartarugas ancestrais e escamas vaidosas, dos dedos abertos de havaianas descalças, de comandantes e comandados ao subir e descer das águas, das balsas atracadas ao porto no vai e vem de banzeiros.
A mente limpa não se cansa de provar e se fartar. Graviolas e araçás, bandas de tambaquis, dim dim, picolés e gostos outros, filés de pirarucus, frutas de sabores jamais imagináveis. Pacas, cotias, tucanos, cobras e macacos, tracajás e seus ovos são abatidos nas inconscientes pegadas da sobrevivência do caboclo simples e degustados sem culpa pelos estrangeiros da terra, negra e massapé, rica e farta, mas descabida do saber de males que ainda virão.
Muitas de muitas recordações. De uma ilha de aventuras e canoas, que agora desapareceu, dos passeios e comidas de Gilvan no rio Manicoré, de motores e recreios, de dois irmãos e Ana Cristina, de um alto falante “a voz de Manicoré” que insistia toda manhã em uma mesma música – a veia debaixo da cama ... – de douglas, yures e bravas irmãs, de valdenores e almires, de um telégrafo com código Morse, de um balneário de santa – Luzia – e rainhas adormecidas, de espécimes folclóricas como Aristeu Bicho e Hélio Bode, de gente de “Coragem” que quebrava muitos galhos e fazia unha no salão para o espanto de curumins, de uma grande mistura sucupirana, talvez saramandaica ou grenvillense.
Quando menos se espera, esperando, mudam-se rumos em um ciclo de cada dois anos, talvez três, se muito quatro, desvencilhando-se sem nunca deixar de ser prisioneiro das profundas marcas vividas. Transformando os transferidos, plenos na dúvida dos sentimentos, recordações e esquecimentos, mudando e sendo mudados, seja onde foram ou estiverem. É quando mais uma vez, estranho, o curumim passa a ser garoto e o garoto de skate de um planalto bem central, estranho entre guris, para novas descobertas e novos contrastes de que serão bem vindos.
Ah! Moleque ... chegará então o dia, em que nas gerais, de onde nascem meninos e meninas goianas, escondidos e disfarçados de adultos, desatrelam e apeiam das memórias desta pátria mãe gentil de tantos brasileiros para renascerem dudamente puros, com sonhos e desejos de criança, quando viver não é nada mais que descobrir.
Por Menino Lu
de Domingues e Rezendes