Reclamismo
(Esta crônica faz parte do grupo de crônicas "Os Quatro Cavaleiros do Cotidiano")
Desde criança, Sandra já reclamava.
Reclamava porque não podia fazer o que queria. Reclamava da programação muito adulta da TV, das regras da mãe, da ausência do pai, das idiotíces do irmão, das prioridades da irmã mais velha, da menina insuportável na sala de aula, das lições de casa da professora, da demora pra chegar na escola, da demora pra sair da escola, da demora pra crescer, da incompreensão adulta, dos machucados que vinham com as traquinagens e até da falta de namorados com o excesso de maquiagens.
Sua mãe às vezes reclamava que Sandra nunca iria crescer se continuasse assim, mas quando o pai deixou de vez a família, foi ela que começou a reclamar. Reclamou da falta de comida, da falta de emprego, da falta de educação, da falta de desapego. Reclamou da pobre Sandra e reclamou do pobre irmão, reclamou até da mais velha e sua falta de consideração. Reclamou da polícia, reclamou do ladrão, reclamou de todo mundo e foi perdendo o coração. De tanto reclamar, acordou um dia e percebeu que seus filhos mais velhos já haviam crescido e partido, deixando apenas ela e Sandra para morar naquele fim de mundo.
Mas a pequena, que já não era tão pequena assim, não tinha aprendido nada. Reclamava de não ter refrigerante, reclamava de não ter limonada. Era tanta reclamação, que acabava sempre numa cilada. Reclamava do abandono dos irmãos e do abandono dos pais. Reclamava mesmo, mas também queria deixá-los pra trás. Acho que, no fundo, Sandra só tinha inveja. Inveja por ser pequena e só poder reclamar.
Quando sua mãe faleceu, a garota já estava na faculdade. Reclamou da maldita morte, reclamou da maldita enfermidade. Deixou pra trás sua casa e foi morar com outra garota, Andressa. Eram colegas inseparáveis. Talvez porque tinham sempre um gosto em comum: reclamar.
Sandra então reclamava desde os reitores até as dores de cabeça. Reclamava das matérias, dos professores e até mesmo da Andressa. Essa, por sua vez, reclamava de tudo que não sabia: desde de física até nome de animais, não sabia o que era uma salamandra, não sabia das leis fundamentais. Então reclamava pra Sandra, que também já não sabia mais.
Mas um dia Andressa deixou de reclamar. Rolou logo uma separação. Sandra reclamou de sua deslealdade e sua ex-amiga lhe sentou um tapão. As duas nunca mais se falaram, mas acho que foi melhor assim. Amizade na base da reclamação só pode ter um fim.
Então estava sozinha no mundo, sozinha com suas reclamações. Reclamava dos trens, do metrô e também das estações. Reclamava do desemprego e reclamava do emprego também. Reclamava como podia, mas nunca era ouvida por alguém. Sandra reclamava por perder o namorado, por perder a família, por perder a amiga e por nunca ser boa filha. Creio que já ouvi Sandra reclamar de tantas coisas, que poderia escrever um poema. Tenho certeza que não me faltaria rima e muito menos um dilema.
Acontece que quando menos percebeu, Sandra já estava enferma. Deitada numa cama e carregando mais de sessenta anos. As reclamações finalmente pararam, as rimas também.
Não tinha percebido o quanto o tempo passou rápido.
Mas percebeu uma coisa: de tudo que ela reclamou, talvez uma ou duas coisas mudaram. Nada nunca estava e nunca esteve ao seu alcance. Uma pena que foi só pra lá de sessenta que ela deixou de ser criança.
Mas, pensando por outro lado, pelo menos ela deixou de ser. Tem gente que reclama até a morte.
E depois reclama de morrer.