Dezesseis banheiros por dia

Dona Josefa tem sessenta anos. Acaba de se aposentar pelo INSS com o salário mínimo, mas há duas semanas descobriu que tem um câncer no intestino em estágio avançado, e a tristeza é tanta que ela nem pensa na aposentadoria. O médico disse que não tem jeito. “Essa aí vai morrer rápido”, disse ele à secretária, quando Dona Josefa saiu. Vai morrer e nem viveu, coitada – no máximo sobreviveu, existiu, durou.

Na infância e adolescência, Dona Josefa não teve carinho de mãe, de pai, de ninguém. Mal tinha o que comer. Não estudou, porque desde cedo teve que trabalhar para ajudar no sustento da família, que vivia amontoada num barraco de pau-a-pique, na região mais pobre da cidade. Não sabe ler nem escrever. Casou-se aos vinte e três anos com um bruto beberrão, seu primo em segundo grau, que a espancava pelo menos duas vezes por semana – ela tinha medo de denunciá-lo à polícia, porque ele ameaçava matá-la. Ele só foi deixá-la em paz ontem pela manhã, quando foi atropelado por um ônibus e morreu. Finalmente.

Desde que completara trinta anos de idade, até recentemente, suportando o marido e criando os filhos com muita dificuldade, Dona Josefa trabalhava na fábrica de tecidos da cidade, lavando banheiro. Lavava em média dezesseis banheiros por dia, menos domingo, que era seu dia de folga, quando se dedicava ao serviço mais pesado da casa – porque o básico ela fazia todos os dias, ao voltar do trabalho.

Dezesseis banheiros por dia, durante trinta anos... O que dá isso? Peguei um calendário na cozinha e estou aqui fazendo as contas... Descontando domingos, feriados e trinta dias de férias – e ainda dando um desconto extra de quinze dias –, cheguei a 250 dias de trabalho por ano. Isso, multiplicado por dezesseis, dá 4.000, ou seja: Dona Josefa lavou 4.000 banheiros por ano, o que em trinta anos de serviço dá 120.000 banheiros. Tudo isso, a troco de quê? De um salário mínimo mensal e uma cesta básica por ano. Seus patrões nunca souberam seu nome, nunca lhe dirigiram a palavra, nunca a cumprimentaram nos corredores da fábrica. Só se preocupavam com a produtividade, com o cumprimento das metas, com o dinheiro que acumulavam, dentro da lei, amparados pelo Estado.

E agora Dona Josefa vai morrer, e eu tenho certeza que a fábrica não vai mandar nem uma coroa de flores para o enterro, nada. Na verdade, não vai nem saber que ela morreu.

Morra em paz, Dona Josefa. Nós, da zona de conforto, não podemos fazer nada pela senhora. E quando a senhora estava na fábrica, queimando sua vida em banheiros sujos para agora morrer de câncer, nós também não pudemos fazer nada. Sabe por quê? Porque somos pequeno-burgueses medíocres e tacanhos, cheios de justificativas para o que a senhora e milhões de outros trabalhadores pobres sofrem no Brasil e no mundo – justificativas prontas, ancoradas em sábias teorias econômicas, que aliviam nossas consciências burguesas e sustentam nossa indiferença mesquinha.

Descanse em paz, Dona Josefa. Talvez agora a senhora viva...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 03/11/2013
Código do texto: T4554518
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.