Conformismo
(Esta crônica faz parte do grupo de crônicas "Quatro Cavaleiros do Cotidiano")
João acordou bem cedinho de manhã...
- João, Tio? Não tinha nome mais manjado não?
Ô, Inferno! Quem tá contando a história sou eu ou é você?
Foi o que eu pensei...
Então, como eu dizia, João acordou bem cedinho de manhã, como se fosse um escravo. Arrumou aquela cama desnecessariamente grande, escovou os dentes ridiculamente brancos. Pensou até em tomar um banho logo cedo, mas era domesticado, e resolveu dizer bom dia pra fresca da sua mulher.
Desceu as escadas de madeira que não paravam de estalar, andou por aquele corredor frio e chegou na cozinha. "Bom Dia, Amor", disse a nojenta. Ela era a única que chamava ele de alguma coisa diferente do que "Siqueira", porque faz tanto tempo que ele perdeu sua identidade que todos o chamam direto pelo sobrenome.
Ele atravessou a cozinha. Passou na frente da cafeteira que nunca usou, porque não tomava café; passou pela torradeira que sempre queimava uma torrada; ficou de frente com a geladeira que estava sempre cheia dessas coisas naturais que tem um gosto muito ruim, mas João e a nojenta da mulher adoravam. Ele estava quase abrindo a geladeira, quando olhou para o liquidificador e percebeu que os ingredientes do seu milk shake matinal já estavam lá. Um absurdo. Se fosse comigo, eu me sentiria um paraplégico, ofendido. Mas tudo o que João fez foi agradecer à sua "queridinha" esposa por preparar pra ele aqueles ingredientes que deveriam ser gostosos se não fossem todos sem gorduras trans.
Mais tarde, João tomou o banho dele naquela banheira grande e horrorosa de feia. Logo depois foi trabalhar, com o cabelinho arrumado, parecendo um pequeno playboy. Se despediu da mulher que disse que logo iria pra academia, mas que com um corpo daquele já não precisava mais disso. Dirigiu seu 4.0 velho; carros como aquele já deveriam ser considerados como patrimônio histórico, não sei como ele não sentia vergonha dirigindo aquilo, por mais limpinho e bonito que ele tenta deixar, uma lata-velha continua uma lata-velha.
Trabalhou num cubículo. Não importa se era no andar mais alto do prédio. Se é quadrado, é um cubículo. Ficou horas e horas achatando a bunda na cadeira, olhando o mundo por cima, se achando o maioral, mas eu sei que ele é só um coitado. Saiu, como todo dia, exatamente meio dia para almoçar. Parecia um robô cronometrado. Pediu pra recepcionista anotar os recados, como se ele fosse importante, e foi comer naquele restaurante meia boca do lado do prédio, aquele que tem cinco estrelas de enfeite na fachada.
Depois que voltou (aliás, ele voltou mais cedo! Desperdiçou o tempo de almoço!), elogiou o cabelo da recepcionista, que disse pra ele que não tinham recados. Não sei como o João consegue ser assim! A Julia, a tal da recepcionista, vive dando bola pra ele! E pensa numa mulher linda. É ela.
Mas, deixa pra lá, vou acabar me estressando.
Ele ficou lá naquele servicinho ruim até o último minuto do expediente. Foi pra casa. Comprou uma bebida horrível no caminho e pagou um absurdo por ela. Chegando em casa, colocou aquelas músicas sem graça que só tem aqueles instrumentos de teatro, sabe? Acho que chamam essas músicas de "Clássicas", mas não ligo de verdade.
Esperou a mulher chegar de sabe-se lá onde, preparou aquele jantar bem sem noção, com ingredientes diferentes que provavelmente não combinam em nada. Levou ela pro quarto e ficaram conversando. Isso mesmo. Conversando. Até que os dois dormiram sem fazer NADA.
- Que miserável que é a Vida desse João, Tio...
É... Essas vidas perfeitas me dão nojo...
- Mas como é que você sabe de tudo isso?
Ah, eu trabalho lá firma dele. Mas isso não importa! É melhor você voltar logo pro reformatório antes que os gambé sintam sua falta, moleque!
- Pode crer... Fui!
E volta amanhã que eu ainda não te contei da Amélia!
- Amélia?!
É... Corre, Desgraça!!...
Foi... Não é que o desgracento correu mesmo?
...
...
Amélia... Aquela era mulher de verdade...
Bom, melhor voltar pro meu turno, ainda tem muito chão pra limpar. Isso que é trabalho digno, viu, João?!