Hipocrisismo
(Hipocrisismo é uma neologia para o ato de ser hipócrita, de cometer hipocrisia)
(Esta crônica é parte do grupo de crônicas "Os Quatro Cavaleiros do Cotidiano")
Você conhece o Ademar?
Todo mundo conhece o Ademar. O "Santo". Um velhinho do qual todos tiram proveito da sua bondade extrema. Às vezes dizem que Seu Ademar é inocente, mas com tanto tempo de vida, é difícil acreditar que sua inocência não seja opcional.
Tem uma vida cotidiana um tanto quanto sossegada. Mora numa vila onde a maioria já está aposentado ou deveria estar. Tem dois túmulos no seu quintal, um para seu Husky e outro para sua esposa, mas não tem nenhuma mágoa em seu coração. Alguns diziam que, de vez em quando, Seu Ademar coloca uns discos estranhos de umas bandas bem depressivas, só pra não se esquecer de como é estar triste.
Uma pessoa qualquer provavelmente diria que isso é loucura, mas coitado dele! Sempre sorrindo, sempre dando a preferência, sempre sendo um exemplo de pessoa. Nada mais justo do que garantir-lhe uns momentos solitários de tristeza, pois é essencial para a alma.
Tem um piano de calda no meio da vila. Um piano que estaria desintegrando por desuso se não fosse por esse Santo Velho. Todas as terças e quintas ele toca uma música mágica e nova, como se o mundo da música e aquele misterioso piano pudessem trazer aventuras infinitas para os ouvidos. Às vezes um amigo do Seu Ademar vinha tocar Violão-Celo também, mas de uns meses pra cá nunca mais apareceu. Deus o tenha.
Era engraçado como seu modo sistemático de agir nunca mudou nos vinte anos que morou ali. Sempre buscando pãezinhos na padaria do Juca exatamente às cinco da tarde. Sempre observando, das nove às onze, as luas e as estrelas. Sempre tirando uma foto da rua e do piano cada vez que tocava. Sempre deixando seu mais novo poema em cima do piano quando terminava de tocar. E ninguém nunca viu aquele senhor fazer algo de errado.
Mas Seu Ademar sempre via alguém fazer algo de errado. Todos os dias, seus vizinhos tinham a audácia de roubar algo da padaria do Juca. Fátima roubava um salame, Dolores roubava um pacote de bolachinhas água-e-sal, Seu Zé roubava uma caixinha de fósforos e Leonardo, neto do falecido Cláudio, sempre pegava três ou quatro balinhas à mais do que pagava. Apesar disso, o Santo nunca roubou nada. Sempre pagava pela barrinha de chocolate e seus quatro pãezinhos. Inclusive, quatro pode parecer um exagero, mas é que Seu Ademar gosta de estar sempre pronto pra visitas.
Outro dia, enquanto ele andava pela vila em direção ao piano, viu Clotildes ser atropelada por um carrinho de supermercado que veio descendo a rua inteira e acertou em cheio suas costas. A desgraçada já tinha feito duas operações e gastado todo o dinheiro da sua aposentadoria pra uma sessão de descarrego na casa da Dona Leonora. Talvez não tivesse mais dinheiro para outra cirurgia. Talvez não sobrevivesse. Talvez seus três gatos e seus quatro peixes ficassem órfãos. E Ademar pensou nisso tudo.
Era um velho até bem "ligado" para a idade que tinha. Imediatamente correu em direção da quase-morta estirada no chão e ofereceu ajuda não só para levá-la para o hospital em seu fusca, como também para pagar a evidente terceira cirurgia. A única coisa da qual não se deu conta, é que a cirurgia que a velha precisava era realmente muito cara e estavam no começo do mês. Não deu nem quinze dias e o Santo já estava sem dinheiro.
Mas ele era um senhor de honra. Arrecadou uns dinheirinhos que tinha em seus cofres e embaixo dos sofás para comprar pãezinhos por mais alguns dias. Ainda assim, faltando apenas um dia para receber de novo, faltou dinheiro.
Naquele dia horrível em que estava realmente pobre, Seu Ademar resolveu comprar apenas dois pãezinhos. Sem barrinha de chocolate. O Juca achou estranho, mas achou melhor não comentar.
Acho que tudo ficaria bem, se o Santo não tivesse lembrado que não tinha açúcar em casa e tentou levar um saquinho sem pagar. Afinal, todos faziam isso, por que não ele?
Deu escândalo. Juca tinha acabado de comprar óculos novos e viu Ademar tentando sair com o saquinho de açúcar. A vizinha toda entrou em desespero quando até a polícia apareceu lá para averiguar a história.
Ninguém acreditou naquilo. De Santo, Seu Ademar passou para Demônio.
- Quantas vezes será que ele já não fez isso? Que horrível! Logo com o coitado do Juca! - Fofocava Dolores;
- Um homem de família fazendo isso... A loucura deve finalmente ter atacado no desgraçado... - Blasfemava Seu Zé;
- E depois vai se fazer de coitado tocando aquelas musiquinhas naquele piano velho. Lamentável. - Lamentava Fátima;
Somente Leonardo ficou com pena do Seu Adem-- "Ê! Sabia que tinha alguma coisa de errado com esse velho!" - Deixa pra lá.
E foi assim que o Santo passou os seus últimos dias na cadeia enquanto Dolores, Zé, Fátima e Leonardo continuavam enganando o pobre do Juca.