Seu Último Suspiro (SUS)

A fila de espera para atendimento se estendia a perder de vista. Nada incomum tratando-se do Sistema Único de Saúde (sigla SUS), frequentemente explicada pelos brasileiros trocistas como sendo “Seu Último Suspiro” (SUS).

O nome justifica-se, já que, para tristeza daqueles que não possuem plano de saúde, só são atendidos pelo Sistema quando estão, deveras, emitindo seu último suspiro, daí a explicação alternativa da sigla ser tão acertada, substituindo a original de forma exímia.

Encaminhando-nos para a sala de atendimento podemos vê-la.

Ela que, recém-graduada em medicina, ansiava por embasbacar os pobres usuários do SUS com seu vasto léxico e ouvia o choro ensurdecedor das crianças, carregadas por suas mães, ao mesmo tempo em que sentia o odor esmaecido de vômito, urina e fezes, trazido pela brisa matinal, já que os designados para a função da limpeza, alegando baixo salário e falta de funcionários, postergavam a higienização do pavimento, remoendo consigo próprios que não havia razão para andar atrás dos atendidos, limpando seus refluxos e dejetos cada vez que eles porventura o fizessem.

- Próximo – chamou a doutora, tendo na voz a mescla de autoritarismo e infantilidade, digna daqueles estudantes que, ao verem-se enfim devidamente graduados e únicos a reinar nas Unidades Básicas de Saúde e hospitais, pensam serem eles os novos salvadores da pátria.

A garota, que aparentava seus nove anos, mas que na realidade eram doze,adentrou a sala de atendimento.

Sentou-se na cadeira de estofado rasgado do consultório, ignorando magistralmente o estofo amarelo e repleto de ácaros que se projetava para fora do couro carcomido do que era para ser uma cadeira, parte fundamental do mobiliário de uma sala de atendimento.

A garota já era conhecida da supracitada doutora e isso a animou um pouco, pois pensava que não iria vê-la novamente. A conhecia bem, desde o acompanhamento pré-natal e não se espantou quando ela, depois de puxar veementemente o vestido de malha que subia acima das coxas, tirara de dentro da bolsa, revestida em strass que carregava consigo,um reluzente Iphone cinco.

_ Iscárlete! – aqui se transcreve a forma como o nome foi reconhecido pela doutora, que sabia ser o da irmã da garota.

_ Iscárlete! – mais uma vez exaltada – Tô na médica!

De forma agressiva a menina golpeia a tela touch screen do aparelho. A linha havia caído.

_ Você tá me ouvindo? – gritou – Tô na médica! Já disse!

_ Mé-di-ca! – disse pausadamente, enquanto a doutora observava, para passar o tempo, uma mosca que voara rasante, pousando graciosamente no cesto de lixo.

Mal esperava hora de conversar com a garota novamente, travar diálogo com tão singela criatura. Tão jovem e já era mãe!

Investira profundamente em cuidados com ela, que vivia com os irmãos na periferia daquela grande cidade, que iniciara uma jornada adulta aos nove anos de idade e que tinha a vivência e conhecimentos práticos que ela jamais ousara supor.

_ Mé-di-ca! – gritou mais uma vez para Iscárlete, que talvez fosse surda, encerrando a tentativa de informar à outra sobre sua localização – Faz assim, Iscárlete: pega o “egredon” que eu guardei na cômoda e cobre o Mateus que tá frio! Já tô chegando já! Já tô chegando!

Ouvindo distraída a conversa, a doutora lembrou-se das primeiras consultas, do acompanhamento pré-natal da garota e de como fora difícil abrir mão de seu refinado vernáculo para conseguir compreende-la e que isso fosse recíproco.

- Então, você tem tido muita flatulência ultimamente? – perguntou certa vez durante o pré-natal, sabendo que era essa uma das mais frequentes queixas das gestantes,ao que a garota pareceu abalada, como se lhe houvessem dito obscenidades.

_ Então... tem soltado muito “pum” ultimamente? – recomeçou, tentando simplificar a linguagem.

_ Doutora?Oi? – foi a resposta sucinta.

Ela já não sabia mais a que recorrer. Não esperava por essa, porém, uma ideia luminosa e fétida lhe passou pela mente naquele momento.

_ Você “peidou” muito ultimamente? – aquela palavra, que desde a infância lhe ensinaram como grosseira, saiu de sua boca como que destroçando-a.

_ Ah, sim! – o semblante da garota foi-lhe gratificante. Valera a pena. – Que nem uma metralhadora!

A conversa telefônica havia finalmente terminado com um: “Até mais, gata!” e então a doutora deu início ao atendimento.

Iria perguntar se a garota havia desistido, segundo crenças arraigadas, de limpar o umbigo de seu filho Mateus com teias de aranha, para que o mesmo caísse, a criança ficasse protegida de doenças ou algo do gênero.

_ E você parou de usar a teia de aranha como recomendei, sim? Por que...pensa comigo –disse, brincalhona – aonde você arrumaria tanta teia de aranha pra limpar o umbigo do Mateus até que caísse? Fez sentido?

_ Ah, doutora! Já caiu já! – ela disse, efusiva, para seu alívio.

_ Porque você sabe que isso poderia ter infectado o local e... – parou novamente a frase, corrigindo-a mentalmente e formulando uma nova, antes que a garota se irritasse por não compreende-la.

_ Porque você sabe que “dá doença”, né?

_ Dá doença, doutora? – ela observou, espantada, incrédula – Porque todo mundo na minha família sempre fez isso e nunca aconteceu nada! Tá todo mundo vivo! Quem morreu foi por droga!

_ Sim...realmente a droga mata... Causa tanto mal... – a doutora disse, devaneante, recordando o contexto social de sua paciente.

_ Quem manda matar é o chefe da boca, quando não pagam ele, doutora! O resto é “de boas”! Ou vai dizer que nunca fumou nem um “beck”? – disse a garota, rindo estridentemente.

A consulta transcorreu então sem mais discussões e no final, para concluir, a doutora perguntou sobre o que era feito do umbigo já caído de Mateus, sabendo que também era costume, as mães o guardarem de lembrança, às vezes por toda a vida.

_ Ah, tá lá, doutora! – disse, eufórica – Tô só esperando secar pra fazer um chá! Vai ser bom pra quando ele ficar doente. Cura mesmo. – enfatizou a palavra “mesmo”, deixando a doutora desconcertada.

Silêncio. A mosca, agora refestelada pelo lixo hospitalar, descreve voos acrobáticos, enquanto acompanha a garota sair do consultório com a cabeça colada no Iphone, atualizando Twitter, Instagram, Facebook e Foursquare, enquanto às suas costas vem a voz já drenada da jovem doutora, que grita:

_ Próximo.

A mosca sou eu, no momento do meu lanche vespertino. Amo lixo hospitalar. Quem sabe, ao sair, eu consiga infectar mais pessoas, no Brasil, no mundo? Ser internacional.

Sou mágica, sou imortal. Tenho altos planos, tenho vários ovos.

Sou extrovertida, empreendedora e adoro novas tecnologias.

Espero que tenha saído nas fotos ,visto que ela fotografou o cesto de lixo para o “Insta” ,bem na hora em que eu estava.

É isso. #partiunovasaventuras

S Malizia
Enviado por S Malizia em 31/10/2013
Reeditado em 31/10/2013
Código do texto: T4550756
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.