Hesitismo

(Hesitismo é uma neologia para o ato de "Hesitar")

(Esta crônica é parte do grupo de crônicas "Os Quatro Cavaleiros do Cotidiano)

Gostaria de lhe apresentar Lucas.

Lucas, na verdade, é um rapaz um tanto quanto inteligente, com bons ideais, uns pensamentos revolucionários, mas, infelizmente, as únicas pessoas que sabem disso se resumem a mim, o Narrador, que possui acesso limitado a todas as personagens das histórias; e você, o leitor, que por um motivo qualquer decidiu ler este texto.

Fora isso, Lucas é um rapaz muito... Comum. Ele fala comum, se veste comum, anda comum e age comum. Tem uma casa de classe média comum, um cachorro vira-lata comum, uma família ausente e perturbada comum, e certa vez até teve uma namorada comum! Está certo que, se você for ver bem, ela mais namorou ele do que eles se namoraram, mas tudo bem.

Sua infância foi, de certo, bem comum. Teve amigos imaginários que, misteriosamente, lhe ensinavam coisas novas; teve uma aflição a garotas quando bem jovem e, depois, percebeu o quanto aquilo era ridículo; caiu de bicicleta aproximadamente mil duzentos e quarenta vezes, mas nunca esqueceu; quebrou o braço (ou será que foi a perna?) fazendo uma traquinagem ou outra; bem comum.

A adolescência não foi diferente. Foi zombado até se cansar na escola; se apaixonou pela garota de melhor aparência, mas com o pior dos corações; foi usado pela namorada, pelos amigos, pelos professores, por suas tias e, principalmente, por sua avó; não queria mudar o mundo, apesar de enxergar todas as deficiências do sistema; ele foi um completo babaca que só ficou olhando sua força de vontade sendo sugada e drenada para fins não lucrativos.

Agora Lucas está crescido e finalmente percebeu o quanto foi usado durante sua vida. Sua mente está mais matura e suas ideias estão mais sólidas. Acordou numa manhã, antes de ir para o trabalho, e pensou que poderia finalmente colocar seus planos em prática.

Penteou seu cabelo da maneira mais bonita, colocou sua camisa social mais apresentável e também aquele cinto de caveira que nunca tinha usado. Calçou as botas de couro mais estilosas, mas antes de sair de casa lembrou que hoje era dia de inspeção de vestuário na firma. Tudo bem, o cinto e as botas podiam esperar para outro dia.

Caminhou todo pomposo para o ponto de ônibus, do mesmo jeito que andam aqueles galãs de cinema quando querem manter a cena. Manteve por pouco tempo, pois, quando virou a esquina, lá estava seu ônibus, parado no ponto e pegando os últimos três passageiros. Instantaneamente, acelerou o passo. Na verdade, correu. Tudo bem, ele poderia fazer a pose em outra caminhada para o ponto.

Assim que subiu no ônibus, um pouco descabelado e com a respiração ofegante, reparou que a garota mais bonita da região, que sempre ia para o trabalho no mesmo horário, estava lá. Tão bonita. Tão elegante. Nem um pouco desarrumada. Pensava que nunca teria uma chance com ela, mas aquele era seu dia! Estava determinado em puxar um papo com ela! Andou em sua direção, no entanto percebeu que não tinha o que falar. Tudo bem, o caminho era grande.

Pensou em dizer o quanto estava bonita, mas parecia muito clichê. Quem sabe perguntar se ela realmente curtia a banda que estava estampada na camisa? Não, ela não cairia nessa. E se ele falasse do tempo acelerado do dia-a-dia? Muito filosófico? Ah, que se dane, ia falar da banda mesmo. Aliás, ele também curtia aquela banda! Levantou-se de seu assento, mas ao olhar para o fundo do ônibus, percebeu que ela estava acabando de descer em seu ponto. Uma pena. Mas pelo menos agora ele tinha assunto, certo? Certo.

Três pontos depois, desceu e caminhou para o serviço. Era evidente que Lucas ainda não havia alcançando nenhum de seus objetivos, mas estava otimista. As chances de alguma coisa ser diferente no seu dia eram, pelo menos, maiores.

Entrou em seu cubículo após cumprimentar todos seus colegas de trabalho com um sorriso no rosto. Terminou todos os relatórios no horário previsto e, ao entregá-los, percebeu que quem recebeu os parabéns foi seu supervisor. O mesmo supervisor que, na verdade, não lhe ensinou nada. O mesmo supervisor que tinha dormido com a mulher do dono da empresa e só quem sabia disso era Lucas.

Apesar de estar com a faca e o queijo na mão, Lucas não gostava da ideia de ser um delator. Pensou em contar tudo, é claro, todos pensariam. Mas optou por manter-se calado, não queria arruinar a vida de ninguém e, pra falar a verdade, a sua estava até que boa.

Segundos antes de ir para o horário de almoço, deparou-se com a única garota da agência que parecia ter algo na cabeça além de cabelos loiros. Ah, se ao menos a auto-estima de um dos dois fosse alta o suficiente para entender que ambos não paravam de se olhar. Mas não era assim. Lucas queria, com cada músculo de seu corpo, falar com ela. Passou o horário do almoço inteiro simulando suas conversas maravilhosas que nunca existiram e então voltou a trabalhar.

Enquanto fazia suas pela empresa, quase desanimado o suficiente para acabar com sua determinação, avistou o anúncio de uma escola de música. Pensou em finamente fazer aquelas aulas de teoria musical que sempre quis fazer. Anotou o telefone num papelzinho e disse a si mesmo que iria ligar assim que terminasse o expediente.

Como você já deve imaginar, Lucas nunca ligou.

Ele nunca conversou com a garota no ônibus, nem sequer soube seu nome. Nunca conversou com a garota da empresa. Nunca descontou sua raiva contra seu supervisor, que dois meses depois subiu de cargo às suas custas. Nunca se vestiu do jeito que gostaria de se vestir. Nunca fez a diferença.

Lucas gostava de pensar que poderia fazer tudo isso, pois gostava de sentir-se no poder de situações que nunca estiveram no seu poder.

Pra falar a verdade, às vezes me questiono se era isso que Lucas acreditava ou será que ele apenas mentia para seu eu interior acreditar...

Eu acredito que, na verdade, ele só estava tentando viver uma vida boa com um pouco de adrenalina sem precisar, de fato, realizar ações diferentes do seu cotidiano. É sábio. É estúpido.

Mas só quem sabe disso somos nós.

E assim sempre vai ser.