A morte banalizada no trânsito.
Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas,nossa insanidade oculta
Michel Foucault
            O uso de veículos é uma prática reverenciada na sociedade moderna, muitas pessoas têm um êxtase ao comprar um carro novo, assim deixam de ter bons planos de saúde, investir em uma moradia digna, para ter um carro do ano, potente, confortável e, é claro: bonito.
            Quando o carro gera poder, força, pode torna-se uma arma em mãos erradas, o caso da médica oftalmologista e dos dois jovens na motocicleta ilustra de forma lamentável o nível de consciência que existe atualmente atrás do volante. Como uma simples provocação pode gerar uma perda tão significativa? Por que a oftalmologista não pensou em seus atos? De quem ela estava realmente com raiva naquela fatídica hora?
            Perguntas que não podem ser respondidas e que certamente levará para o túmulo, o que demonstra que Charles Robert Darwin estava certo, a vida é gerenciada pelo acaso, que a razão é uma película fina como gelo que pode ser rompida por nossos atos de profunda animalidade, dizem que se o chipanzé conhecesse a tecnologia da bomba atômica já teria exterminado o mundo três vezes. Como enfrentar isso? Esse animal cheio de uma raiva sem endereço que mora dentro de cada um de nós?
            Uma das amigas da médica, uma assistente social, disse que ela está sofrendo muito. Entendemos, em linguagem jovem: ”ela está fodida”, mas o que dizer da família dos dois jovens? A médica têm dois filhos, será que ela seria capaz de enfrentar a lei do olho por olho?
            A brutalidade de ter os dois filhos estraçalhados no meio da rua, claro que não, seria insano, desumano, uma vingança animal!
            A riqueza determina a ação da justiça, pense em um ladrão de tênis, ele estava algemado e foi conduzido ao presídio e lá ficou por dois anos, qual o verdadeiro valor de duas vidas humanas comparados a um tênis, quantos anos essa médica, que têm o rótulo entre os amigos de humanitária e de atender os pobres “de graça”, deve ficar na cadeia?
            Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, em seu monumental livro Crime e castigo, é explícito: que com a prática de um crime vem o castigo da consciência, será que isso é suficiente, muitos, incluindo esse cronista, acreditam que a médica sairá impune, mas para a sociedade é necessário que ela seja punida?
            Michel Foucault, disse essa frase “A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia”, se foi um ato de loucura transitória, que a médica está muito arrependida (bla, bla ,bla), pode o estado de direito perdoa-la, afinal, como disse a sua amiga ela está viva, enquanto os “outros” estão mortos, podemos esquecer os dois jovens e a sua devastada família e cuidar da médica oftalmologista como uma pessoa doente ou que cometeu um erro passivo ao ser humano?
            Há quem diga, ainda falando de deuses, que é um problema de carma e que esses jovens fizeram alguma coisa em outra vida e pagaram nessa, então a médica seria uma justiceira divina?
            Diga-se de passagem, que ao ver o vídeo podemos notar que a raiva dela é digna de um lutador de MMA, que a ação poderia ser pior se o carro não parasse a centímetros da outra via.
            A verdade é que acidentes como esse não podem ser chamados de fatalidade, podemos perdoar a médica, mas o justo é que cumpra vinte anos pelos menos por cada homicídio e esse perdão seja concedido a velha de sessenta anos que vai sair da cadeia, a raiva social, que me contamina, se deve a banalização do homicídio - morte como fato casual, parte atribuído ao pouco valor que os religiosos dão a vida na terra que para muitos é a  única possível, que para outros é a pior de todas e esperam o paraíso.
            Pode ser que os dois jovens estejam no céu, o que todos queriam é que eles fossem para o céu aos noventa anos, depois de amar, ter filhos, caminhar na areia da praia, sentir a chuva, pular na piscina e ter a chance de viver essa vida que é tão bela e tão gostosa – santo Deus, principalmente na juventude, a médica vai lutar com todas as forças para ter a vida dela de volta, pois deles ela já esqueceu, foi o carro que matou os jovens e ela não tem nada com isso, um acidente, uma fatalidade.
            A boa amiga da médica disse: “eles foram para um lugar melhor”, ela está viva e sofrendo. Que conclusão medonha, ridícula e parcial. Desvalorizar a vida na terra, minimizar o grande dom que a vida é, isso parece ser um sinal desses tempos, quem sabe a médica não poderia ir conversar com os deuses, pedir perdão, pois aqui ela merece punição exemplar.
            Penso que se existir outro lado ela vai enfrentar algo bem pior.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 31/10/2013
Reeditado em 31/10/2013
Código do texto: T4549953
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