Da arte de ser culto
DA ARTE DE SER CULTO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 30.10.13)
E então, não é mesmo?, o artesão faz arte ou refaz a cultura?
Por esse mesmo caminho, as culturas populares resguardam a cultura ou serão igualmente, ou mesmo exclusivamente, uma forma de arte?
Assim considerado, o artista se dedicará a criar a sua arte ou se satisfaz a trabalhar a cultura, ou com cultura?
No caso, um artista popular será verdadeiramente popular se for um operário das artes ou se apoiar seu labor na cultura, evidentemente que na cultura popular?
Na verdade, um artista (de verdade) poderá ser mesmo popular, especialmente no decorrer da sua vida, já que faz parte da nossa cultura não darmos valor aos vivos, em especial quando tais vivos deixam-se ficar ao alcance dos nossos olhos, quase vizinhos da gente?
Será mesmo que a cultura em geral volta-se para o passado, para a tradição, para os usos e os costumes (certa época, mais ou menos isso era chamado de folclore, termo hoje execrado e posto em forçado ostracismo), visando assim proteger e valorizar o que nos foi legado pelos avoengos, até mesmo em atitude de resistência cultural frente às ameaças externas, que não são poucas nem pequenas, enquanto a arte, talvez uma pequeníssima fração do universo cultural, olhará para o futuro e para fora, para o estranho e para o novo, para a ruptura e para a transgressão, ansiando chegar indecifrada até os pósteros mais distantes possível?
Assim sendo, se é da nossa cultura romper as regras e transgredir as leis do trânsito, estaremos fazendo arte ao ultrapassar pelo acostamento?
Ou será necessariamente conservador o romance escrito diretamente na máquina de escrever do meu avô?
Constituirá atitude artística, ou de consumo e fruição de arte, declamar ao celular para a amada distante um poema de Vinícius enquanto dirigimos em meio ao trânsito caótico, já que é cultural de nossa parte dirigir e celular (celular, aqui, como verbo, claro)?
Por seu turno, sendo a corrupção um ingrediente quase indissociável da nossa cultura política - e o quase vem aqui por conta da constatação comprovável de que todos nós já ouvimos falar de algum político contra quem ainda não se provou nada -, quais deverão ser os atributos fundamentais para que se consigne a um dado e passado ato de corrupção (ativa ou passiva, tanto faz, posto sempre haver alguém do outro lado) o "status" de obra de arte?
Será condenável a corrupção alheia, arraigada na cultura nacional, enquanto a nossa não passará de um rasgo de esperteza, de um lampejo de criatividade artística?
Uma pessoa, para ser chamada de culta, haverá de ser versada nas culturas em geral, ou em alguma delas especificamente, ou precisará entender de artes, ou de alguma dessas específica?
Expressando a mesma questão de outra forma: será dito culto quem leia os clássicos, ouça música erudita, viaje a sítios históricos, frequente museus, teatros e cinemas de arte, ou as amplas acepções atualmente atribuídas ao conceito de cultura lhe subtrairão tal, digamos assim, distinção, renomeando-o de artístico, um cara artístico, não mais, ainda longe, pois, de ser visto e entendido como um sujeito efetivamente culto?
Qual será o limite de vezes, isto é, qual será a quantidade de encenações que fará com que uma obra de arte teatral, inovadora e arrojada, se transmude em um espetáculo de cultura tradicional devido à repetição sempre igual das mesmas cenas, dos mesmos diálogos, das mesmas surpresas e, até, dos mesmos atores?
Enfim: existirá cultura sem arte? E arte sem cultura, existirá talvez?
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.
Tratei, pois, de preservar a verdade dos princípios elementares da natureza humana, ao mesmo tempo que não tive escrúpulos em inovar quanto às suas combinações.
Mary Shelley, Prefácio a "Frankenstein ou O Prometeu Moderno"
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