Patrício e o pé-de-goiaba

Quando eu tinha meus tenros 17 anos de idade,e tocava acordeon, fui contratado para fazer meu primeiro "baile da vida" , por um empresário de música que dominava esse mercado em B. Horizonte.

Só tinham alguns pequenos detalhes: Eu não sabia onde seria, que tipo de festa,que tipo de repertório e nem conhecia nenhum dos músicos que me acompanhariam neste verdadeiro "Vôo cego". A única informação que conseguí foi que seria na residencia de um diretor de um grande Magazine da cidade.

Quanto ao repertório , não me preocupei pois sempre tive um ótimo ouvido e tocava tudo que ouvia no rádio sem saber uma nota musical,

Tudo "de ouvido" como dizia meu pai,que tinha excelente leitura de primeira vista, mas ao contrário de mim não tinha ouvido nemhum e era incapaz de tocar Atirei o pau no gato, sem o auxílio de uma partitura.

Os músicos, que só conhecí na hora de começar o baile, eram todos bem mais velhos que eu(todos de 50 pra cima)mas muito bons em seus instrumentos: FILINHO,um corôa que tocava bateria e cobrava as caronas de volta que nos dava em seu chevrolet antigo,mas em estado de zero km. Foi o primeiro pão-duro que conhecí ao vivo; Jésus um guitarrista que tinha umas manchas escuras no rosto, dedos super ágeis que tocavam numa velocidade impressionante sem errar uma nota sequer.E ria muito. Jésus riria até de batida de banda de música com carroça. E por falar em carroça,vou falar de Patrício, o contrabaixista, um senhor de sessenta anos, forte feito um touro, que se vangloriava, justamente, de nunca ter tomado remédio pra nada. -"Nunca sentí uma dor de cabeça, uma dor de dente nem sei o que é uma febre" Dizia ele todo orgulhoso. Flinho, muito gozador dizia que ele não tinha dedos. Tinha cinco porretes em cada mão.Parecia um guarda-roupas de casal com as portas abertas, arrematava.

Patrício tinha ouvido absoluto.Qualidade que alguns músicos têem de nascença e que eu invejava.

Qualquer som que ouvisse, fosse um copo batendo em outro, um metal que caisse no chão, ele dizia: Sí bemol... ou, Fá sustenido.Eu corria pro piano e checava. O cara não errava uma.

Eu comecei a falar de Patrício ao falar de carroça,porque Patrício era a pessoa mais humilde, generosa e amiga que conhecí no meio musical.Na Orquestra era meio que meu anjo da guarda. Guardava uma cadeira pra mim, na hora do jantar, depois do baile,cuidava pra que eu pegasse a condução certa pra voltar de madrugada pra casa, etc.Durante o dia ele era Carroceiro, tinha uma carroça e uma mula velhas e fazia fretes no longíquo bairro Santa Inez, onde morava.

Aos vinte e cinco anos, já casado e com dois filhos, fui morar numa casinha popular, tambem longe mas do lado oposto ao bairro de Patrício, mas tão longe quanto.Tres quartos pequenos, um de música com meu velho piano de armário, outro das crianças e um maior de casal com a janela dando pro quintal onde sobreviviam um pé de mamão que eu mesmo plantei e uma velha goiabeira que já estava lá quando chegamos.

Chateado com alguns moleques que pulavam de vez em quando o muro pra roubar goiabas, resolví acabar com aquela farra e arrancar a goiabeira dalí.

Claro que minhas mãos de pianista, sem a menor intimidade com qualquer tipo de ferramenta, não conseguiram fazer o serviço até o fim.A goiabeira tinha raizes profundas e quem era eu pra ter força ou jeito para arranca-la toda.

Resultado: serrei o tronco a uns 30 centímetros do chão

e ficou aquele toco firme como uma rocha a derrubar qualquer um que invariavelmente tropeçava nele e se estabacava no chão.

Meu amigo Patrício sabendo que eu me mudara para a Cidade Industrial, ficou curioso e foi um dia me visitar, mais pra ver onde eu estava me escondendo.

Chegando lá, conversa vai, conversa vem, bolinhos, cafezinho, depois fui mostrar-lhe o quintal onde Flavinho e Nana brincavam com um velocípede.

Quando Patrício viu aquela coisa enterrada com uma canela ameaçadora pra fora, me chamou num canto e falou, brando mas energicamente: Quem fez aquele ""serviço" alí, foi voce?

Nào tá vendo que pode machucar as crianças seu sem-jeito? Despediu-se e foi embora com a cara fechada.

Uma semana depois fomos despertados mais cedo que de costume com umas pancadas fortes e um barulho oco que faziam tremer a parede do quarto. Abrí a cortina da janela e quem eu vejo?

Patrício sem camisa, a calça arregassada, com aquele físico de lutador de Sumo caboclo, com um machado quase do meu tamanho a golpear o toco do pé-de-goiaba. Vestí uma roupa rápido e corrí pro quintal a tempo de ve-lo agarrar o toco com suas mãos de cinco porretes cada uma e arranca-lo da terra como se fosse um pé de alface.Meu amigo deve ter saído de casa pela madrugada dada a distancia de onde veio e pela hora que chegou á minha casa.Mal mal deu um bom dia, lavou a cabeça do machado, enrolou com um pano, apoiou no ombro e foi embora com um sorriso mal disfarçado e com a sensação do dever cumprido.

E eu pensei comigo: Lá vai um homem bom!

Aecio Flávio
Enviado por Aecio Flávio em 27/08/2005
Reeditado em 05/09/2005
Código do texto: T45465