Doce café amargo

Acordava todas as manhãs de domingo, tomava seu café preto sem açúcar, em sua rotina habitual. Descia as escadas, cumprimentava o porteiro e descia a Rua das Amoreiras assobiando. Parava na banca, sorria para o Sr. Manoel, que sabia exatamente o que ele queria. Comprou o jornal e fez o trajeto de volta para a casa. Poderia sentar-se na pracinha, onde a brisa fresca e as crianças davam vida ao ambiente. Mas preferia ficar em casa, em seu lar frio e solitário, lendo o texto que enchia seu coração. Abria na página 2, lia e relia, 4 a 5 vezes, a ponto de decorar aquelas palavras. Aquelas doces palavras que dedos delicados haviam teclado para compô-las. Fechava o jornal e colocava no canto, assim como os outros. Pegava a coleira e chamava o labrador, que saltitante, passeava tranquilamente com o dono.

No dia seguinte, acordava relutante, saia da cama, tomava seu café preto sem açúcar, em sua rotina habitual. Descia as escadas, abria a porta e descia pela Rua das Amoreiras, virava a esquerda e entrava no escritório. Ignorava a moça do café, a recepcionista ou qualquer mulher que animadamente o cumprimentava. Sentado em sua sala, olhava pela janela e seus olhos iam de encontro com a sala de reuniões do velho jornal da cidade. As vezes via uma mulher jovem vasculhar papeis, ou dar ordem a outros de sua profissão, tentando salvar o tradicional que se afogava em dívidas. E quando ela sorria, ele também sorria. Ao meio dia, descia o elevador, subia a Avenida da Alvorada e entrava no restaurante chinês, onde todos os dias almoçava. Sozinho. 20 minutos tardar, a moça entrava, sentava-se 2 mesas a frente e o garçom, que a conhecia por nome, já lhe trazia o que ela sempre pedia. Entretanto, havia algo de diferente. Algo de diferente haveria de ter, ou esta história não estaria sendo contada. O habitual computador fora substituído naquela tarde de segunda-feira por um livro. E o suco de abacaxi com hortelã viera trocado pelo de limão. Ela levantou a cabeça para chamar o garçom, mas algo prendeu seus olhos. Olhos que a encaravam. Encaravam, curiosos e indesviáveis. Magnéticos. Ela sorriu, constrangendo o rapaz, que voltou a encarar o prato assim como ela encarava seu livro. E fora assim que a nova rotina na vida dos dois fora instalada. Todos os dias ela entrava com um livro na mão, e a troca de olhares de 5 segundos acontecia.

Sexta-feira, e ele acordara alegre, saíra da cama, tomara seu café preto sem açúcar, em sua rotina habitual. Descera as escadas, cumprimentara o porteiro, abrira a porta e descera pela Rua das Amoreiras, virara a esquerda e entrara no escritório. Cumprimentara a moça do café, a recepcionista ou qualquer mulher que animadamente o cumprimentara. E almoçara no restaurante chinês. Às 6 horas descera as escadas, caminhou pela Avenida da Alvorada, virando de esquina com a Rua das Amoreiras, quando esbarrou em alguém. Mal-humorado, reclamou da chuva de papeis e se abaixou para pegá-los. No meio dos papeis encontrou um livro conhecido. O 3º livro dos 4 que ele havia escrito. Olhou para o transeunte em quem se esbarrara e encontrou olhos familiares.

- Desculpe. - Ela disse, sorrindo, tirando uma mecha do rosto e encarando o chão. - Sou muito desastrada.

- Não tem problema. - Ele gaguejou, quando ela ergueu os olhos novamente. - Eu estava distraído.

Um silêncio prolongou-se. Em fim, ela pegou os papéis e o livro, deixando-o ali.

No domingo ele se levantou. Tomou seu café preto sem açúcar, 3 horas atrasado em sua rotina habitual. Desceu as escadas e desceu a Rua das Amoreiras. Parou na banca, comprou o jornal e fez o trajeto de volta para a casa. Abriu na página 2, dobrou o jornal. Ia sentar-se para ler, mas o cachorro, inquieto, pedia pelo passeio. Pegou a coleira atou-a ao labrador que, impaciente, puxava o dono para a rua. Pegou o jornal, decidido em lê-lo na pracinha. Quase não conseguiu, tamanha a pressa de seu cão.

- O que você tem hoje? - Ele perguntou, recebendo um latido em resposta. Desceu as escadas e foi puxado porta afora do prédio, quando a guia arrebentou. Correu pela Rua das Amoreiras, gritando pelo cachorro. Virou a esquina para a Avenida da Alvorada, e freou bruscamente quando viu o cachorro, este sendo acariciado por uma mulher. Ela levantou os olhos.

- Oi. Esse cachorro é seu?

Ele sorriu.

- Sim, costumava ser até arrebentar a guia e procurar pro outro dono. Talvez um que o levasse para passear na hora certa. - Ele disse. A moça se levantou e o encarou.

- Você é o professor Marcos, certo? De filosofia? - Ele acenou a cabeça, afirmando. - Talita. - Ela disse estendendo a mão. - Gostei muito do seu livro sobre política moderna.

Respirando fundo, olhou para o cachorro. O danado estava sentado ao lado de Talita, nem um pouco desesperado por um passeio. Respirou fundo e falou, tomando coragem para fazer o que devia ter feito na primeira vez que viu Talita sorrir do outro lado da janela.

- Quem sabe você não me conta o que achou, agora, em um almoço?

Ela sorriu.

- Sim. E você poderia me contar o que achou do meu último artigo. - Disse ela, apontando para o jornal na mão dele.

Juntos, os dois caminharam pela rua, em direção ao restaurante chinês.

- Então? - Ela perguntou após o almoço, tomando um café preto com açúcar - Tem alguma ideia de que será seu próximo livro?

- Estou pensando em algo relacionado sobre coincidências do destino.