Canto de gari

Como todas as pessoas, eu gosto da chuva. Como todas as pessoas, eu gosto da chuva sob certas condições: 1) Que eu esteja em casa enquanto estiver chovendo; 2) Que a chuva passe assim que eu pensar em sair de casa; 3) Que, mesmo estando em casa, a chuva não se prolongue por muitos dias. Fora essas condições, existem algumas outras que, embora não essenciais, contribuem bastante para uma melhor aceitação do fenômeno, como 4) Pegar no sono ouvindo a chuva cair no telhado; 5) Abraçar alguém enquanto se olha pela janela a chuva cair e 6) Sentir o cheirinho de terra no momento em que a chuva der uma trégua.

Não sendo observadas essas condições, especialmente as duas primeiras, o resultado sou eu praguejando enquanto um tremendo pé d'água despenca sobre a minha cabeça no meio da rua. Um daqueles temporais em que guarda-chuva nenhum resolve, e podemos nos dar por agradecidos se o vento não arrastá-lo para longe. Poças d´água se acumulam por toda a calçada e meus pés ficam encharcados. Xingo o governo e a minha sorte de estar na rua num dia como esse.

Com o pouco de visibilidade que ainda tinha, consegui ver ao longe um gari que caminhava na minha direção. Vestia uma capa de chuva, mas nem por isso se molhava menos do que eu. Ao vê-lo, tive consciência de que as coisas poderiam ser piores e de que outras pessoas poderiam estar sofrendo mais do que eu. Tive então pena do homem, que não estava se deslocando de um lugar para outro, mas justamente trabalhando embaixo daquele aguaceiro. Quando já estávamos próximos um do outro, pensei em dar ao homem um sorriso de compreensão, algo que quisesse dizer “Eu sei, eu sei. Mas fazer o quê? A vida é dura”. Estava pronto para consolá-lo. Então o homem passou por mim. Assobiando. Assobiando! Assobiava uma música alegre, não reparou em mim, não reparava na forte chuva que caia sobre ele, não maldizia a própria sorte, apenas continuava a trabalhar – assobiando.

Nada nos humilha mais que canto de gari em dia de chuva.