Aprendendo A Desapegar
                (You Have To Break Free)

Aquela minha turma de crianças, ou pré-teens, era muito especial. Eram completamente diferente por que formavam uma turma única e toda especial. Pelo menos aos meus olhos.

Moravam no Centro da cidade de São Paulo, a maioria vivia apenas com a mãe guerreira e solteira, uma ou outra viúva. Alguns viam pra aula com o irmão ou primo, depois tinham aula de natação ou futebol na ACM. O tempo delas era todo tomado por atividades por que a mãe tinha que trabalhar muito para sustentar os pequenos luxos da família e sendo assim, as crianças eram mais maduras do que as outras e as vezes eram por demais 'espertas' para minha cabeça pois tinham um vasto conhecimento sobre o Centro de São Paulo e as pessoas que o habitavam. Talvez por conviverem com aquela realidade nua e crua que cercava o Centro que proporcionava a cada novo dia uma aventura inusitada como ouvir a bela voz do Edson Cordeiro ecoar entre os altos edifícios que engoliam os calçadões, a flauta do Charles que encantava os pedestres e fazê-los parar por alguns instantes para extravasar as tensões, observar algum pedente e a sua estratégia em como conquistar um real de quem passasse por ele ou até esbarrar com o Antônio Ermírio de Moraes perto do Teatro Municipal que era vizinho do edifício dele. Sem contar as vezes que as crianças chegavam atrasados por que assistiam com olhos curiosos um cidadão que apreciava a vista do alto do Viaduto do Chá e estava matutando se dava ou não seu último mergulho daquele ponto turístico ou se jogava no vão do Metrô da Praça da Sé. Aquela modernidade trágica toda contrastando com a miséria e a arquitetura histórica não só de Niemeyer mas também dos tempos do Império. A cultura que a rua oferecia com seus mais variados artistas e também seus loucos poetas andarilhos que vagavam durante o dia recitando seus terrores e buscavam o abrigo do aconchego das praças Roosevelt, da República e da Sé à noite. Crianças entre nove e doze anos com jogo de cintura e malandragem por que tinham que saber como proceder pelo Centro e esquivar do perigo que havia em cada esquina e em cada sorriso e olhar docemente perverso. Se Caetano não entendia muito bem a deselegância e mistérios de Sampa, bem, essas crianças eram mestres no assunto.

                    

No início, foi nada fácil cativá-las. Cada qual dando o seu traço e toque rebelde mas também todo especial na nossa imensa tela, hora colorida como a do Van Gogh que inspira o desenvolvimento, outras vezes revelando o perdão de alguma obra genial de Rembrandt.

               

                          

Cada aula especial e diferente por que essas crianças pré-adolescentes eram fora do comum ... únicas e agora minhas! Confesso que eu aprendia muito mais com elas do que elas comigo. Eram uma benção para mim.

Uma das minhas preocupações era ensiná-las tudo direitinho e enfatizar certas lições para que ficassem gravadas em suas mentes para toda vida. O assunto do dia tinha que ser abordado de forma gostosa, muito lúdica e também ser valorizada. A turma criou um jornalzinho com receitas e notícias em inglês, toda semana tinha uma canção e estória, bingo com verbos, vocabulário, etc. As aulas eram sempre divertidas e o tempo parecia voar.

             

Foram dois anos e meio juntos. A única que não ficou na turma foi a Amanda cuja mãe resolveu voltar para o interior de São Paulo e abrir seu próprio negócio. Fizemos uma festinha de confraternização e também de despedida pra Amanda lá no McDonald´s da Rua Sete de Abril. Já no finzinho do nosso encontro, o Henrique falou que não queria trocar de 'teacher' e o resto do pessoal também se manifestou. Nenhuma das crianças simpatizava com a ideia de eu ser substituída por outra 'teacher'. Fiquei lisonjeada com a declaração mas busquei ficar na minha, sem entregar as pontas e desabar em lágrimas com aquela declaração do Henrique.

As águas de março chegaram e as aulas começaram. Não vi nenhum nome das minhas crianças na nova lista de chamada que me deixou chateada mas a vida é mesmo assim. Nem tudo é como a gente quer ou sonha em ter. Melhor se acostumar com isso e manter os pés no chão. Mas quem sabe ...  a cabeça livre pra buscar inspirações e ousadias que a Lou Salomé tanto pregava nos seus versos e vida.

Encontrei as crianças no snack bar da escola tomando sorvete e ao me verem, vieram correndo ao meu encontro. Muitos abraços e beijos espontâneos, os mais gostosos que existem. Tantos que me senti sufocada de amor. A verdade é que me sinta uma deusa, um ser santo e sublime. No meio das minhas crianças eu sentia toda poderosa. 

O Henrique falou num sussurro bem triste: "A nova profi é legal mas queria tanto que você fosse nossa 'teacher' de novo!"

Pensei comigo mesma e sem refletir muito falei: "Sabe Henrique, a vida é assim mesmo. Temos que conhecer muita gente. Você pretende namorar né?" O Henrique respondeu que sim! Aí perguntei: "Você vai namorar com apenas uma garota? Vai ter apenas uma única namorada?" Ele sorriu pra mim e disse: "Acho que não, né." Falei que seria bom namorar algumas garotas até achar a certa, aquela que mais combinava com ele e que fizesse ele feliz. Acrescentei: "Vai namorar, vai terminar namoros mas também saiba que pode voltar a namorar uma ex-namorada por que vai descobrir que ela é mesmo legal e que de repente vale a pena mudar algo em você ou aceitar alguma maluquice dela por que vale muito a pena e não é idiotice se você ceder se acredita na felicidade. Ter vários professores diferentes também é muito bom. Você vai aprender muitas coisas novas com todos e um dia, quem sabe, eu volto a dar aula para você e eu mesma vou me surpreender com o quanto você aprendeu e cresceu! E aí vamos conversar muito e saber um do outro e aprender muito mais! O que você acha?" Henrique sorriu e respondeu: "Legal, né teacher! Vai ser muito bom ter aula contigo de novo um dia! Tomara que seja logo"

           

Sou pisciana do primeiro decanato e já fui muito mais ciumenta em relação as pessoas que amo e fazem parte do meu cotidiano, principalmente os meus primeiros alunos que eu considerava exclusivamente 'meus' mas, naquele dia aprendi o quanto é importante desapegar daqueles que gostamos e admiramos assim eles podem experimentar e descobrir seu próprio eu. Tinha por volta de vinte e um anos e quase quatro de carreira. Também aprendia a cada dia, a cada aula com cada um dos meus alunos inspiradores.

Ninguém consegue crescer e ir para frente se estiver preso à alguém, ainda mais se for do tipo dependente e carente. 

A vida é um passeio público onde a gente esbarra com muitas pessoas, convivemos com algumas no nosso dia a dia em casa, na escola, no trabalho, no clube ... Algumas nos ensinam coisas magníficas, outras o básico para se virar nessa vida doida enquanto outras não nos dizem nada. Tem pessoas que adotamos como mãe, pai e irmão enquanto outras escolhemos para ser nossos amigos e confidentes. Certas pessoas nos marcam com seus pensamentos, seu jeito de falar, gesticular e pensar mas outras ... não cheiram nem fedem. Não sufocar a pessoa quem amamos é essencial para que ela cresça, que saiba escolher e trilhar seu caminho para que ela seja livre para ser quem deseja ser.

                        

 
A vida dá infinitas voltas e se a gente tiver sorte, até mesmo   um   pouquinho   de   conspiração   por  parte
dos nossos anjos guardiões, reencontraremos pessoas
que fizeram a diferença em nossas vidas e elas poderão constatar que carregamos um pouco do DNA delas nas nossas atitudes, gestos, comportamento e jeito de olhar pra vida. Com certeza, elas saberão que encontramos as respostas ... as nossas respostas!
Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 27/10/2013
Reeditado em 28/10/2013
Código do texto: T4544147
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