COMENDO MERDA DE GALINHA

Quando criança, sempre fui muito levado, muito peralta, muito traquino, muito efervescente; mas qual criança sadia e de bem com a vida não carrega consigo esses adjetivos, quando, de maneira informal e amigável, é feita a sua biografia por alguém bem mais velho? Portanto, eu enquadrava-me entre as crianças normais de minha época.

Fui vencido pela vida em uma de minhas batalhas, mas a derrota se deu por finalização e não por nocaute, pois não perdi nesse momento a consciência. Estou falando da perda de minha mãe biológica quando eu tinha 3 aninhos de idade. Desde esse momento a minha vida deu uma guinada.

A minha memória criou, acho eu, uma espécie de proteção, de sistema de defesa, pois muitas e muitas coisas não consigo me lembrar, é com se eu não tivesse tido infância.

À época em que nasci foi finalzinho dos anos 60, mais precisamente 1969. Vivia-se nessa época um regime ditatorial. Vivia-se nessa época sob os estatutos do Código Civil de 1916. Nessa época quem mandava na casa era o “homem”; a mulher, coitadinha dela, era relativamente incapaz, até pode-se dizer que o Código trazia, para a mulher, uma “presunção absoluta de imbecilidade”. Isso mesmo! Acho que foi por isso que minha mãezinha não suportou mais aquela vida. Nessa época não se tinha uma lei que cuidasse especificamente dos diretos da criança e do adolescente.

Mas mudando de assunto e indo para o que interessa-nos, algum tempo depois meu falecido pai resolveu contrair (essa é a melhor palavra que encontrei para expressar a maldita ação que ele praticou) casamento com uma mulher de nome Raimunda, acho que ela nem tinha sobre nome, pois não sei e nem quero saber e terei raiva de quem sabe.

Dos quatro irmãos que éramos, meu pai resolveu levar justamente eu para morar com ele e servir de lambaio e capacho da dita raimunda (escrevi propositalmente com “r” minúsculo, porque essa pessoa não merece o respeito de mim e muito menos da nossa belíssima Gramática Normativa Brasileira). Fui morar com eles em um lugar chamado Vila de Beja, no interior de Abaetetuba- PA, lugar onde nunca mais coloquei os meus pés, desde então.

Eu já deveria ter uns 5 ou 6 anos de idade. Era surrado quase todos os dias. Toda tardinha eu tinha que puxar água de um poço que havia no fundo do nosso quintal e encher um barril, desse que é usado para armazenar petróleo, de 159 litros, aproximadamente. Todos os dias eu era tirado de minha rede por volta das 5h e era obrigado a entrar no barril cheio de água, água gelada. Isso tudo era para que deixasse de ser preguiçoso (mas não deu muito certo rsrsrsrsrsrsr).

Nessa época eu era apaixonadíssimo por leite em pó e nescau. Mas ela já havia me alertado para eu não roubar o leite e o Nescau que havia no armário. Mas não adiantava, pois eu era um perito em roubo de leite e Nescau. Era só ela dá uma vacilo e pronto. Lá se ia uma colherada para o meu insaciável estômago lácteo.

Um dia ela escondeu a lata de nescau no lugar mais alto do armário. Eu a vi escondendo, mas ela não me viu. Esperei ela sair e assim que ela saiu, eu prontamente peguei todos os bancos e mesas que tinham na cozinha e coloquei-os uns sobre os outros até formar uma pilha, na qual eu pudesse subir e alcançar o cobiçado e delicioso nescau.

Acho que aquela mulher tinha parte com o capeta! Quando eu coloquei o nescau em minha boca e as papilas gustativas de minha língua, responsáveis por detectar os sabores doces, começaram a enviar sinais ao meu cérebro que um objeto tão esperado acabara de entrar no meu sistema digestivo, ouvi o barulho de alguém se aproximando (por incrível que pareça, o que era doce como mel em minha boca tornou-se amargo como fel em meu estômago). Era ela! Dei um pulo da pilha de bancos e fiquei estático, pálido. Até hoje não sei como o meu sangue voltou a circular pelo meu corpo depois daquele susto.

Além de estático, fiquei extático, isto é, admirado, pois ela dera um leve sorriso entre os lábios, que mesmo em minha inocência de criança pude perceber a sua maligna intenção. Morri! – pensei.

Ela perguntou-me docilmente “o que você está fazendo, menino!”. “nada!” respondi-lhe com a voz embargada na garganta. Mas, por mais que se seja um perito em furto, um dia deixa-se pistas, pois nem um crime é perfeito, pelo menos essa é a máxima usada na literatura policial. “como assim?!! Nada!!” perguntou-me. Houve alguns segundos de silêncio, um silêncio sepulcral! Fiquei calado, pois a cena do crime apontava contra mim. Os bancos empilhados, a lata de nescau aparecendo em cima do armário.

Mas nunca imaginava que a prova contundente da ilicitude estivesse sobre mim. Explico-me. Ela aproximou-se de mim, estendeu o braço e passou um de seus dedos sobre o meu peito e depois o levou bem próximo a sua boca, colocou a ponta da língua para fora e esfregou o dedo nela e... “hummm! Isso é nescau?!!” E mais uma vez perguntou aos berros “você estava roubando o meu nescau, não era?!!!!

Pegou-me pela mão dizendo: “dessa vez você vai aprender a nunca mais roubar nescau em toda a sua vida, eu já sabia que você ia roubar nescau assim que eu saísse, por isso eu voltei logo”. Levou-me até o fundo do quintal (pensei que naquela hora eu iria ser imolado), entrou comigo no galinheiro que lá havia, encheu a sua mão de fezes (merda) de galinha, abriu a minha boca e encheu-a de fezes até eu vomitar e desmaiar de tanto sofrimento devido as porradas que me dava, devido ao abuso de uma pessoa adulta, devido a humilhação que passava.

Diante de tudo isso aprendi uma única coisa: criança tem sentimento, sofre humilhação, sente-se desamparada, precisa de pais amorosos. Agora, a nunca mais roubar nescau ou leite, isso eu não aprendi rsrsrsrsrsrsrsr.

Manoel Barreto
Enviado por Manoel Barreto em 26/10/2013
Reeditado em 21/11/2013
Código do texto: T4543085
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