Um médico e seu destino

Dr. Gomide era um médico muito respeitado entre seus pares. Apesar de jovem – não tinha nem quarenta anos –, era considerado um dos melhores oncologistas do país. Sua taxa de cura era altíssima. Só morria mesmo quem o procurava num estágio bem avançado da doença, com metástases pelo corpo todo. Seus colegas achavam isso espantoso e o invejavam – queriam saber se havia um segredo, uma técnica nova, qualquer coisa, mas ele não dizia nada.

Dr. Gomide via cada paciente seu como um jogo de estratégia. Para ele, o doente não passava de um desafio, um campo de batalha onde ele, no papel de médico-herói, testava suas habilidades de jogador, sua expertise, com um único objetivo: aumentar sua fama e, consequentemente, seu patrimônio. O paciente era um meio para se alcançar um fim – sua história, seus medos, sonhos e esperanças não existiam –, só seu corpo era real: objeto vivo, coisa constituída de carne, ossos, vísceras e gordura, que se movia e respirava como uma galinha assustada, um porco ou um rato: em última análise, um problema a ser resolvido.

Quando perdia uma batalha para a morte e era punido com uma pequena redução (quase sempre por pouco tempo) na sua invejável estatística de cura, ele se irritava, ficava de mal-humor; mas logo se recuperava e partia para outra.

Dr. Gomide tinha uma saúde de ferro e se achava imune a qualquer tipo de tumor. “Minha genética é perfeita”, dizia aos amigos, orgulhoso. De fato, tinha feito vários exames nos Estados Unidos, França e Alemanha, com os geneticistas mais famosos e respeitados do mundo, e todos tinham lhe garantido que nunca teria câncer – ainda mais ele, que se cuidava como ninguém: além dos exercícios físicos regulares e da dieta saudável, seguia um tratamento preventivo caríssimo, acessível apenas à nata mais privilegiada da sociedade.

Um dia, porém, ele descobriu que estava com um tumor maligno no cérebro. “Não pode ser”, disse para si, assustado, lutando para não entrar em pânico. Repetiu o exame três vezes, em três centros de diagnóstico diferentes, e o resultado foi o mesmo. Ficou arrasado.

Começou então a jogar no seu próprio corpo, aplicando nele tudo que sabia, todas as técnicas e habilidades que aperfeiçoara no decorrer dos anos; e enquanto ia perdendo o controle da situação – o tumor aumentava de tamanho numa velocidade assustadora –, foi percebendo uma verdade que, antes, ao lidar com seus pacientes, ele não via com clareza: como qualquer um, ele, Dr. Gomide, não era um simples jogo de tabuleiro, mas uma unidade complexa constituída de corpo, mente e espírito – em outras palavras: um ser humano –, que naquele momento estava triste, desamparado e com muito medo de morrer.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 25/10/2013
Código do texto: T4541310
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.