Minha bolsa de couro de búfalo 


Assim que teclei o ponto final de “Minha bolsa alcânave”, publicando-a em seguida no meu galhodearruda.com, peguei a bolsa alcânave (de cânhamo, no Aurélio; apenas semelhante ao cânhamo, no Houaiss — eles que saiam no tapa no cantinho de céu que lhes coube), abri o gavetão do guarda-roupa e enfiei-a lá dentro. Adeus, boa amiga. No processo, deparei com minha bolsa de couro de búfalo, que, como sabem, perdeu completamente a banca depois que voltei em definitivo para Marechal Hermes, há quase cinco meses, endividado como um personagem de Dostoiévski. 

Bolsa caríssima, não combina em nada com minha roupa de cronista — bermudão, camisa pólo e mocassins de couro cru —, não tem espaço para os muitos livros que passei a carregar comigo aonde quer que me dirija, não dá dois passos na rua sem despertar a inveja e a cobiça alheia. Com uma bolsa dessas a tiracolo é impossível sair para a desprotegida noite carioca sem atiçar larápios e descuidistas, que afinal estão no papel deles. 

Acredite ou não o leitor ou a leitora amiga, no dia em que a comprei — curiosamente, dali a duas horas ia almoçar com a nossa cronista maior Helena Sut — havia uma manifestação de ambientalistas na Sete de Setembro, próximo à loja de onde eu acabava de sair, fazendo um barulho dos diabos no meio dos transeuntes e parando todo mundo na rua para colher assinaturas. Que fazer? Esse pessoal tem um olho infalível para o couro de búfalo legítimo; eu não ia conseguir passar por eles sem levar uma bronca e um sermão, no mínimo. Tinha de pensar depressa. Não queria briga com ninguém, não é do meu feitio, mas não levaria desaforo para casa. Já me bastavam os meus dissabores com a esquerda troglô. 

Ainda pensava numa saída, quando duas militantes do movimento se aproximaram de mim, examinando-me dos pés à cabeça. Uma delas, linda de viver, tocou rapidamente na correia da bolsa e indagou-me, peremptória: 

“Couro de búfalo?” 

Como passar para vocês a idéia de uma pergunta assombrosamente ameaçadora? Foi só isto: “Couro de búfalo?”, e senti-me o mais culpado dos mortais, massacrado de vergonha, mais criminoso do que o próprio Buffalo Bill, que pelo menos tinha a seu favor a ideologia epocal do progresso ianque. Acrescente-se que, se uma das militantes era linda, a outra era feia, feia de morrer, e com pinta de não botar o galho dentro diante de macho nenhum. 

“Minha amiga lhe fez uma pergunta”, disse a feia, brandindo sugestivamente uma tesoura imaginária, e gritou-me nas fuças: “Couro de búfalo?” 

Moralmente acuado, temeroso de demorar a responder e atrair mais militantes para o nosso lado, resolvi que devia ser sincero com elas, mas sem exagero. 

“Sim, couro de búfalo”, disse eu, sorrindo amarelo, e emendei: “Couro de búfalo clonado.” 

Não sei se, a rigor, isso faz alguma diferença; depois de pronto (permitam-me), um búfalo clonado não pode ser menos búfalo do que o outro; virando bolsa, não vai ganhar uma etiqueta esclarecedora só por causa disso. Mas o fato é que as duas acharam uma graça incrível, não se sentiram engazopadas por mim e abriram a guarda, deixando-me passar e seguir meu caminho. 

Fizeram mais: encheram minha bolsa de panfletos, como um salvo-conduto até que conseguisse livrar-me da imensa aglomeração. 


[16.12.2006]