Larápio de prato
Durante algum tempo ampliei minha circunferência abdominal num mesmo local. Ambiente simples, frequentado por pessoas comuns em uma localidade humilde.
PFF. Essa era a sigla escrita com giz no alto do quadro negro que informava o cardápio. “Prato feito fundo” era o significado.
Comida caseira, saborosa e abundante. As pessoas eram sempre as mesmas, cada qual com suas manias, com seus trejeitos, com seus cacoetes.
Uma jovem loirinha, com a cara infestada de espinhas, não parava de esticar com as pontas dos dedos – indicador e polegar - alguns fios - talvez os únicos - de sua rala sobrancelha, parecia querer mostrar ao mundo que possuía pelos naquela região. Seu Gregório era o proprietário, mas muito se assemelhava a um atendente de telemarketing, tamanha a quantidade de telefonemas que o desnorteava no horário do almoço; mantinha permanentemente um palito no canto da boca, de tempos em tempos baldeava-o de leste para oeste, de lá para cá no seu mundo bucal. A atendente era Dona Soraia: Nortista robusta, atarracada, de rosto redondo, estufado e sardento. Mantinha sempre os cabelos envolvidos por uma rede de malha fina. Sempre que parava ante as mesas para atender os clientes agia da mesma forma: perguntava o que iam querer e enquanto aguardava suas decisões, afastava a mão na altura dos olhos com as unhas voltadas para os mesmos, olhava-as e em seguida enfiava um dos dedos na boca para praticar a roidinha corriqueira.
Todas essas manias me chamavam a atenção mais não passavam de meras entradas, pois o prato principal, o mais esperado por mim, talvez o maior motivo para justificar minha fidelidade ao estabelecimento estava por vir. O ponto alto do almoço se dava quando um grupo de quatro funcionários de uma mesma empresa da redondeza chegava para almoçar. Amigos afinados e entrosados tinham por costume forrar o estômago ali no boteco do Sr. Greg.
Um deles - o protagonista do espetáculo - fiscalizava os pratos de todos, seus olhos contemplavam-nos com extrema destreza, esquadrinhava-os e registrava a medida exata que cada prato continha, parecia “ O exterminador do futuro” vivido por Arnold Schwarzenegger.
O quarteto compunha personagens fixos: Algoz, vítima e testemunhas. Essas últimas não compactuavam efetivamente com o crime, apenas presenciavam sem nada falar, praticavam a política do “não sei de nada”. Mesmo não concordando com o golpe, ignoravam por completo quando o salteador agia, afanando no prato do “amigo” as carnes e legumes de sua preferência.
A tática era simples e eficiente. Ele fotografava tudo em sua mente de larápio e procurava distrair sua vítima. Pedia a ele que pegasse o paliteiro, o saleiro, o azeite ou qualquer outra coisa que desviasse sua atenção. Num desses episódios - aproveitando que o alvo já estava de pé - atirou deliberadamente um talher no chão e pediu que o mesmo o trocasse.
Naufragava seus furtos no feijão e os encobria com arroz. Mesmo que seu prato estivesse visivelmente abastado, ainda assim tinha de realizar aquele ato. Aquela prática tornara-se um ritual, uma obsessão, uma sina e se não a fizesse não se sentiria alimentado, saciado.
Um dos amigos comentou com boca de siri. “É um cleptomaníaco”, o outro revidou também em boca miúda, mas num tom mais explosivo. “Cleptomaníaco nada, é pilantra mesmo!”.
Lembrei-me de minha infância, quando também surrupiava alimentos nos pratos dos meus irmãos. Óbvio que não havia a tática nem o profissionalismo que aquele sujeito desenvolvera, prova disso foi quando ao fisgar uma batata do meu mano, coloquei-a direto na boca no exato momento em que ele se virava em minha direção. Batata quente em boca fechada não pode dar bom resultado: Boca e garganta queimadas.
Dia desses fui almoçar em “Greg” acompanhado de minha mãe, lá chegando deixei-a a par dos fatos, ela ria e admirava a cara de pau com a qual o sujeito realizava seus crimes e comentou perplexa, num desabafo risonho ao vê-lo atuando.
-Perante todos e em plena luz do dia?! Um absurdo!
Fui contagiado, impelido à mesma prática, com a mesma sutileza e eficácia que um bocejo alheio nos obriga também a bocejar. Fascinado, pedi a minha genitora que pegasse um copo, assim que se ausentou finquei o garfo em dois pedaços de linguiças fritas do seu prato, depois acalentei minha consciência alegando que com aquela atitude havia reduzido os índices de gordura e colesterol para ela, utilizei o edredom da hipocrisia para justificar e aquecer o ato frio e calculista da falcatrua, da trapaça, da roubalheira.
Enquanto rebolava o queixo triturando o fruto do meu assalto, fui surpreendido pelo olhar penetrante daquele que me inspirara. Meu mestre me observava orgulhoso, seus olhos brilhavam, um meio sorriso de orgulho se formou em sua boca. Envaidecido, como se estivesse me parabenizando, mostrou-me sua mão fechada com o dedo polegar ereto e finalizou com um jargão popular. “Tamo Junto”.
A jovem espinhenta também presenciou todo o desenrolar criminológico do meu ato, seus olhos me fuzilavam enquanto estivava, puxava os únicos dois fios acima do olho. Com o dedo indicador verticalmente esticado, conduzi o mesmo a minha boca e o grudei nos meus lábios, alarguei os olhos fitando os dela e em silencio conclamei sigilo.
Depois desse dia, a preocupação com a saúde de minha mãezinha aumentou e sempre que almoçamos juntos observo as carnes e legumes do seu prato, imagino quais os danos alguns daqueles alimentos podem causar a sua precária saúde. Sabe como é! Minha mãe é idosa, tenho que zelar por sua saúde. Se eu que sou filho não fizer, quem o fará?