Um dia depois do outro

A morte é, para mim, um enigma de difícil solução. O problema é que uns morrem antes da hora, outros depois do meio-dia e alguns, os I_mortais, permanecem vivos para sempre em nossas memórias de elefantes de cativeiro. Eu que sou vacinado e escriturado no livro dos haveres, nunca me dei bem com esse mistério pecaminoso. Pode ser que um dia eu venha a superar meus próprios recordes de segundo colocado e a encare de frente. Por enquanto estou na fase da adaptação caseira.

Um dia desses fui ver uma cova pra comprar, felizmente ela era apertada demais para o meu Ser delicado - nada rústico, além do mais era usada. Por isso, desisti do negócio na porta do cartório de registro de imóveis... agora quero ser cremado com as minhas vestes para que não haja dúvida sobre meu derradeiro suspiro kafkiano. Só de pensar que um dia posso ser exumado, me dói os ossos da face e a retilínea fissura de minha alma Compadecida.

O problema em si, não é morrer. É a morte que nos ronda todos os dias. Ela é incansável e demente. Quando deparo com ela, olho no olho, o medo parece não ter fim, minhas mãos embrutecidas pelo tempo, ficam geladas e trêmulas. É como se me grudasse a ela sem que ao menos me desse a oportunidade de recuar em algumas questões que ficaram mal resolvidas entre nós em tempos passados. É tudo muito rápido e rasteiro.

Um dia desses deparei com algo que jamais imaginei que pudesse existir entre nós – a síndrome de Stevens-Johnson.

A doença é causada por uma reação alérgica envolvendo erupção cutânea principalmente nas mucosas. É de difícil diagnóstico. As drogas causadoras dessa enfermidade mais prováveis são os antibióticos, os anticonvulsivantes, os analgésicos e os anti-inflamatórios. Pode ocorrer também associada a outras doenças graves.

A sensação que tive, foi como se nós – os pobres mortais, não valessem uma consulta médica que nos desse dignidade pelo menos uma vez na vida. Não sei se foi o despreparo ou o desconhecimento da doença que levaram o fatídico médico a diagnósticos equivocados (a doença é de uma raridade Franciscana). Mas no momento mais agudo da dor, ele nos disse que éramos uns apavorados – na verdade fomos um bando de loucos por ter acreditado piamente nos seus parcos conhecimentos da Stevens-Johnson.

Como já disse, a morte é mesmo um enigma de difícil linhagem em meu vocabulário. O corpo estava lá, estendido na cama como se implorasse pela vida e nós, cegos de sabedoria, fazíamos o que mais sabíamos: NADA. Porque nada do que nos era dado a fazer, parecia justificar tamanho descompasso. A dor que víamos naquele corpo parecia algo esquelético, sem razão aparente de ser. Nadávamos sem objetividade, nossas braçadas eram irrelevantes perante o quadro que se desenhava aos nossos incrédulos olhares leigos por excelência.

O tempo passava como se fosse um trator de esteira de segunda mão, a cada dia, valas enormes eram abertas por todo o corpo. Parecia que os ossos repugnava a pele que estourava em bolhas esparramadas por toda a extensão do ser-não-ser que em momento algum blasfemou contra quem quer que fosse os seus infelizes algozes. Muito pelo contrário, nunca vi tamanha resignação e doçura em uma só pessoa. O corpo padecia como uma vela no pedestal, contrastando com a lucidez e a coragem de alguém que só queria viver seus últimos momentos com a pureza e a dignidade dos justos.

Quando a vi pela derradeira vez em seus momentos finais (ou iniciais para quem acredita em outra vida), já sem a cor dos que vivem, percebi que jamais seria o mesmo. Sua voz já não era firme, um som metálico saía de dentro daquele corpo que queimava como uma pira olímpica atravessando o meu novo ser. Ela não estava mais ali, seu cadáver encoberto pelas gazes, era apenas os restos mortais de alguém que já havia partido em direção ao infinito, rumo aos que vieram a este mundo para brilhar. Brilhar como Estilista, como Mãe, como Mulher... de tanto brilhar, virou Estrela.

Naquele dia sai da UTI cantarolando a música que sempre cantou para a minha filha: “mãezinha do céu, eu não sei rezar. Eu só sei dizer - quero te amar”. Ela não era a minha mãe, mas é como se fosse. Ela tinha uma filha biológica, uma filha emprestada e um monte de outros filhos, alguns crescidos, outros em fase de crescimento. Ela amou e criou centenas de crianças de uma creche que deveria se chamar... saudade.

Quando o médico da UTI foi nos dar a notícia de que ela havia falecido, seus olhos choravam como se dela fosse o mais novo dos seus filhos.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 23/10/2013
Reeditado em 03/10/2017
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