Ingênuo, eu pensava que a verdade bastasse

INGÊNUO, EU PENSAVA QUE A VERDADE BASTASSE

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 23.10.13)

Suponhamos que, certo dia em 1919, alguém tenha comprado um exemplar do jornal "O Estado", de Florianópolis. A folhas tais, terá encontrado um texto não assinado, misto de crônica, crítica de arte e matéria jornalística, que o interessou a ponto de fazê-lo recortar e colar o artigo em um caderno escolar. Esse texto, de suposto título "A exposição do sr. Hantz", poderia terminar assim, na ortografia da época:

"Ha aqui, em Florianopolis, um pintor modesto e pobre que, pela sua maneira candida e simples merece uma referencia especial: o sr. Eduardo Dias. Este artista nosso, mau grado os sarcasmos do sr. Guttmann Bicho, tem uma linda e commovente virtude: pinta scenas, recantos ilhèos com tão santa e pura sinceridade, que, por isto mesmo, ninguem lhe da o apreço que devia."

Os dois personagens citados foram e são figuras públicas por suas notórias atividades nas artes plásticas: Dias local, Bicho um pintor nacional. Pois se você pinçasse do artigo essa característica comportamental do Guttmann, cruzasse a informação com outras disponíveis e fizesse disso um texto de ficção, provavelmente seria processado por algum Bichinho, neto do Bicho pintor, que alegaria danos morais insuportáveis, pelos quais pediria "justa indenização", ou seja, grana mesmo. O meritíssimo juiz possivelmente escreveria na severa sentença condenatória coisas como "Apesar da intransmissibilidade dos direitos da personalidade, evidente que os descendentes podem defender a imagem do ente querido já falecido, pois, quem ainda vive, sofre os efeitos das boas ou más qualidades atribuídas aos que já se foram" e, mais adiante, tornando transparente a essência do julgamento, "O fato é que, independente da veracidade das informações e das respectivas fontes, houve excesso por parte do réu na forma como Galdino Guttmann Bicho foi descrito".

Ao final, você ainda poderia ser abatido por uma negação pretensamente axiomática: "Não se pode aceitar, pois, que um livro de ficção contenha palavras de desrespeito a cidadão que, de fato, existiu."

Em resumo: os vivos sofrem se forem atribuídas más qualidades aos seus mortos, o que autoriza os primeiros a defender a imagem dos segundos independente da veracidade das informações e das fontes, pois não será dado a um livro de ficção conter palavras de desrespeito a gente que de fato existiu.

O exemplo acima (hipotético?) foi desenvolvido para obras de ficção histórica, mas está sendo exaustivamente aplicado às biografias - e, o que é pior, como no caso de um livro sobre Paulo Leminski, aplicado a novas edições de biografias anteriormente autorizadas. De repente, os herdeiros, como se fossem donos da vida do falecido, ou o próprio biografado, deixam de gostar do que gostaram e suprimem do patrimônio nacional parte da memória coletiva, parte da nossa História. Proíbem biografias que não sejam previamente censuradas ou exigem participação nas vendas. Aplaudem a hipocrisia.

Agora, enfim assoma à cena a ministra da Cultura, Marta Suplicy, declarando-se contrária à autorização para biografar figuras públicas (como já o fizera sua antecessora no cargo, Ana de Hollanda, irmã do Chico que quer a censura). Diz ela: "Minha opinião caminha para o apoio à liberdade de expressão, com multas mais vultosas aos autores que infringirem a verdade e a imagem do biografado". E aqui mora, de novo, o grande perigo: qual imagem do biografado? A que ele faz de si? Verdade e imagem em geral serão antagônicas.

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Após os fatos narrados abaixo, quebrou no dia 28.09, sábado, o meu antigo computador portátil, onde mantinha cópia de parte dos meus arquivos. A máquina continua quebrada e apenas no dia 07.10, segunda-feira, consegui recuperar parcialmente meu material de trabalho, arquivos inclusive, em um novo portátil. No dia 04.10, técnicos da banda larga trocaram conectores, pontas de cabos telefônicos, modem e roteador que deixavam minha internet virtualmente inoperante.

Por sorte (acho eu), setembro já acabou...

Depois de ficar mais de 24 horas (entre 14 e 15.08) sem banda larga, a qual continua caindo com frequência, fiquei sem computador da noite de quarta-feira, 04.09, até a tarde de quinta, 12.09, quando me foi devolvido pela assistência técnica com a notícia da perda de todos os meus arquivos, programas, senhas e "links". Nesse tempo, meu acesso à internet foi quase nulo - dificuldade que, obviamente, persiste até recuperar o que for possível das minhas cópias de segurança.

Lamento e peço desculpas pelo "apagão".

Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

Janeway Smithson estava naquele trabalho havia vinte e cinco anos e era estúpido o suficiente para se orgulhar disso.

Charles Bukowski, Factótum