CRIANÇAS DA TRANSFERÊNCIA
Ontem, mamãe me contou que sou adotado. Não entendi muito bem tudo o que ela falou, mas compreendi que tenho duas mães, uma que não quis ficar comigo e a outra que quis.
Não amo a minha mãe que não quis ficar comigo porque não a conheço, mas minha outra mãe disse que eu deveria gostar dela, pois ela me deu por amor.
Minha mãe que me cria disse que a mãe que me deu foi a mãe que me carregou na barriga por nove meses e só me deu porque ela era bem pobrezinha e não tinha comida nem pra ela nem pra mim, por isso, ela pensou que seria melhor para mim, ir morar numa casa onde eu recebesse comida todos os dias, roupa limpa e muito amor.
- Ela não podia me dar amor? – perguntei a mãe que me criou; ela sorriu, como faz quando eu faço alguma pergunta que ela acha que é de criança, mas ela me respondeu que a mãe que me deu também me amou e por me amar, decidiu me transferir para outra família; pois temia pela minha vida e mesmo sofrendo muita dor por dar o seu filho para outra mãe, ela fez isso; e hoje eu sou filho da mãe que me criou.
Confesso que às vezes quando penso nisso, fico bem confuso, ainda mais porque eu não posso reclamar, eu tenho duas mães, e tem um monte de criança por aí, que não tem mãe alguma; como aquele menino na rua com a mão estendida; se ele tivesse mãe, a mãe dele não deixaria ele ficar na chuva pedindo comida. Acho que a mãe que me deu não queria que eu virasse esse menino; e pensando nisso, começo a gostar muito mais dela.
Perguntei para a mãe que me cria porque ela me quis e ela respondeu que a natureza não lhe deu condições de carregar uma criança por nove meses na barriga; mas o papai do céu é tão bom, que inventou as crianças de transferência: crianças especiais que nascem na barriga de outras mães que não pediram para ter filhos só para serem entregues para as mães que vão criar esses filhos como se fossem os filhos que elas haviam pedido.
Acho que é algo assim, só sei que sou uma criança diferente das outras, pois tenho duas mães. Na verdade, acho que eu tenho uma terceira mãe, mais essa não conta, pois ela é mãe de todo mundo.
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Notas do autor: cerca de 1000 crianças são adotadas por ano no Brasil, quase metade por pais estrangeiros, vindos de uma cultura onde a adoção está livre dos preconceitos que ainda vigoram no Brasil. Esse número poderia ser maior no Brasil, se a adoção ainda não fosse cercada por mitos e todo tipo de preconceito. Para começar, a mãe que entrega o seu filho para adoção não é uma vilã. Na maioria das vezes, realmente o principal vilão é a falta de recursos para sustentar essas crianças, outras vezes, é a própria condição psicológica dessa mulher.