UM AMOR DE AVÓ

Esperei que ela abrisse o manto da proteção e o estendesse sobre mim. Foi em vão. Fitei-a inseguro, olhos de súplica. Pedi perdão. Olhava-me com frieza, distanciada de meus sentimentos. Orgulhosa. Onipotente. Esperei que ensaiasse uma atitude, tomasse qualquer decisão. Falei em minhas culpas. Do muito mal que tinha lhe causado: agruras devidas a preocupações, brincadeiras ofensivas, aborrecimentos inoportunos de menino levado. Que nada. Não me ouvia. Resolvera agir assim, friamente, numa pedagogia autoritária.

Estava ali, sentada na poltrona de brocado, com novelos entre as mãos, olhar distante, comprido, para a janela. Minha avó. Olhando-a assim, sentia pena. De mim, dela, de nós. Por sermos o avesso de suas aspirações: cheios de vida, astutos, perspicazes, briguentos, barulhentos, perturbadores. Ela quieta, silenciosa, solene. Não nos queria por perto. Às vezes, achava que nos odiava. Tão diferente de meu avô, suave, doce, amigo, franco, feliz. Ele, no auge da alegria, satisfação com a vida, afeito aos pequenos prazeres, fortalecido na dor, tranqüilo, sereno. Ela, forte, resoluta, uma rocha. Sempre nos seguia com o olhar e quando não gritava, falava com aspereza e dor. A dor lancinante dos que não aceitam o sofrimento, dos que invejam a vida que aflora, que se tinge de cores douradas, luzes flamejantes, fogos ardentes. Tinha em seu íntimo uma vontade extrema de nos ensinar, de moldar a sua imagem e semelhança, de nos fazer crescer. E por isso, nos diminuía, achincalhava nossas misérias, desconsiderava nossas descobertas, nossos progressos, nossos sonhos. Mesmo assim, eu percebia no seu olhar uma certa fragilidade, uma pureza escondida, uma ingenuidade que temia emergir. Se pudesse mergulhar naquela alma, por certo, veria muito mais do que aparentava. Aquela mulher forte, guerreira, autoritária tinha uma doçura e sensibilidade que insistia em ocultar. Sabia que me amava, mas a sua maneira. Querendo ensinar a todo momento, transmitir uma aprendizagem contida, fabricada, padronizada aos conceitos que internara em seu subconsciente. No fundo, percebia isso e me dava um alento. Quem sabe um dia, encontraria a verdadeira face daquela mulher sofrida. Não naquele momento, em que me submeti aos seus caprichos, desvendando minha própria alma, mostrando-me assim, indefeso, fraco, implorando o perdão por pecados tão infantis. Não naquele momento em que assumi uma mistura de sentimentos, inferioridade e ódio, evitando pensar desta forma, não entendendo como poderia odiar minha vó. Não naquele momento, quando avistei a mulher enorme, que se agigantava ante meus olhos e se diminuía ante meu coração. Custou-me entender que a fortaleza ruía a qualquer momento e que mais cedo ou mais tarde, vislumbraria um afeto, um gesto de carinho, mesmo pequeno, tímido, incerto. Era uma forma de amar, talvez como ela tenha apreendido em toda a sua vida e dela ter feito o seu método de vida. Um amor de avó.