A viagem sem volta

 
Quando o ônibus saiu em excursão escolar, algo exageradamente misterioso aconteceu em mim. Muita gente falava, poucos se sentavam, alguém perguntava algo, vários arrumavam as bolsas nas poltronas, tantos demarcavam lugares com objetos, alguns se moviam a passos obstados (então lentos) no estreito corredor, diversos sorriam altamente, outros já comiam e bebiam, todos felicitavam, menos um: eu. Algo exageradamente misterioso aconteceu em mim porque pude, por segundos que foram, prever e, mais profundo, sentir a tristeza do regresso. Eu sentia a falta, previamente a falta de amizades que se intensificariam e, mais, sentia falta das que ainda seriam construídas! Por fugaz que tenha sido, pude ainda assim me condoer pela dor do fim de alegrias elevadas à máxima potência, alteadas a quanto a emoção humana pode suportar sem entrar em colapso por excesso de gozo. Um silêncio duradouro pela dor se instaurou em mim; mais rápido, no entanto, foi o sorriso que me tomou (então permanentemente) a partir de quando as fotos começaram a se registrar. A alegria de que eu tinha saudade então começaria!

A mim nada me pareceu demorada a viagem de dezesseis horas, pois já ali no ônibus em trânsito se delineavam as comemorações na histórica Paraty. Posto que chegamos, começamos já a admirar a cidade, em culinária, arquitetura e mar. Os sorrisos eram ininterruptos, o apetite de ação era insaciável. Guias turísticos faziam-nos desequilibrar no calçamento secular e arcaico fotografado por nossos i-pods futuristas.
 Alguém disse “trem”: eram mineiros no Rio, fluminenses sorriram, o que mesmo havia era embarcações. Imantávamos olhares de todos nas ruas, por sermos um grupo extenso, barulhento, feliz e, crucial, por sermos muito bonitos porque jovens. A caminhada foi longa, a estrada era real, mas também havia alucinações. Pouco antes do casamento a noiva foi encontrada morta. O noivo desmentiu dizendo que a tinha visto pedir água. Na busca do corpo enterrado, encontraram o corpo revirado. Foi enterrada viva pensada morta. Os guias disseram a nós que ela ainda andava por lá a certa hora da noite. Ninguém sentiu medo, a não ser no momento em que me distanciei do grupo por dois minutos, nas ruas mal iluminadas e centenárias. No penúltimo dia, uma garota nossa fotografou uma noiva de véu que andava pelos becos, mas a feição não era de sede.

Pelas ruas, cheiro de água. Uma igreja incomensurável, por muito monumentais pedras pesadas, mesmo afunda. Um sino soa antigo, as costas suam. Casas bastantemente antigas, buzinetas denotavam riquezas dos antigos moradores, bem como pedras descomunais se impunham nas calçadas dos abastados. Telhas de cerâmica da mais agradável estética indicavam a eira, a beira e a tribeira. Vozes de cães soavam longe, cães nos seguiam de perto, abanando a cauda. Canhões muitos relembravam tempos de guerra e riqueza, mas nada intimidavam, tanto que meninas delicadas se fotografavam neles. Escunas presas ao cais se movimentavam com o balanço das águas, querendo nos dizer que ansiavam por navegar; entendemos bem aquele sinal. 

Ilhas grandiosas à venda. Mergulho profundo. Remadas em caiaques. Pisamos o chão pisado por aqueles que estão nos livros. Historiadores faziam suposições perspicazes, comprovadas após em achados. A história nos era contada. Fazíamos outra. Um espírito sem luz necessitava se desprender deste mundo, mas, para isso, precisava se desgarrar do tesouro que enterrou egoistamente. Figurou no sonho de alguém, informando o lugar. Onde cavaram o que se achou foi só uma grande velha panela cheia de metais reles. É fato, portanto, que o espírito ainda estava pela trilha por que passamos, caminhando talvez junto a nós.

Uma trilha em subida intensa, uma ponte medrosa, uma manhã na cachoeira, uma personalidade insólita, uma menina privilegiada por voz muito singular, um riso alto, um beijo, um almoço comido por sorrisos, uma conversa de encher o coração a ponto de querer segurá-lo cuidadosamente com as mãos para que não exploda de alegria. Uma trilha em descida sacrifical, um cheiro de onça, uma gigantesca pedra engole nosso guia de maneira amedrontadora, após engole uma garota, depois um garoto, engole todos nós, alguns duas vezes, saímos abaixo com a água. Fantástico!

À noite comida. Comemos e nos unimos ainda mais, tornamo-nos mais amigos, compartilhávamos terrenos de nossos próprios corações, sentíamos as mesmas dores, tínhamos as mesmas vontades. No hotel, o último café da manhã sem clima nenhum de despedida, porque tínhamos muito ainda a fazer. Alguém quebra uma jarra, a alegria suplanta tudo, um corte no braço deixa o coração ferido. Perdeu-se um anel; uma aliança se fez. Um jovem muito jovem experimenta pela primeira vez uma carícia feminina (da menina mais bonita) e se descentra. Último dia, dia de compras, livraria é obrigatório, roupas, bebidas artesanais.

Malas coloridas espalhadas pela calçada do hotel, todos muito falantes, mais amigos que antes! Sem clima de despedida. Eu não queria voltar. Jamais tornaria a ser o que era. Mais um dia sequer na companhia de todos talvez me saciasse, mas tive que me contentar com as horas de viagem em retorno, e pedi a Deus que a volta fosse demorada. O ônibus apresentou defeito, paramos na rodovia. Pude degustar os últimos momentos nas companhias daqueles amoráveis navegantes celestes como se saboreia o melhor dos pratos. O fim da excursão me foi como o começo. O que havia em mim era uma saudade quase insuportável de pessoas que só tornaria a ver no dia seguinte.