O dia em que me chamaram Manel
À Memória de Luis Francisco,
falecido em 17.02.2013
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O Luís costuma vir bater à minha porta - ou porque o trato bem ou porque gosta da minha pessoa – e normalmente tenho um copo de vinho para lhe oferecer, que é aquilo que ele mais aprecia.
Sempre o conheci assim, misto de mendigo e de cigano – uma pessoa incontrolável, mas mais livre do que qualquer ser humano que alguma vez eu tenha conhecido.
Não existem elementos que o detenham, nem estilos que o convençam. É vulgar vê-lo encasacado em pleno verão ou maltrapilho nos rigores do inverno, pormenor que depende muito da sagacidade daqueles que lhe oferecem as roupas.
A verdade seja dita: Nunca o vi engripado ou doente, assim como nunca o vi limpo, nem aprumado.
Ele percorre todas as localidades das redondezas e até já foi visto em Lisboa e em Leiria, montado na sua fiel bicicleta.
Não consta que alguma vez tenha sido assaltado e todas as vezes que gritou a sua revolta por lhe terem roubado o amado velocípede, veio depois a descobrir-se que afinal este tinha sido esquecido nalgum descampado, no delírio das suas desventuradas bebedeiras.
Mas quem poderá questionar um homem que nasceu sem ambições, que vive ao Deus dará e que se moldou por si próprio ante as difíceis circunstâncias da vida?!...
Sim!... Hoje o Luís veio até à minha porta, como em tantas outras vezes mas, neste dia em particular, eu não estava com a disposição habitual e fiquei um pouco aborrecido pela interrupção pois ando às voltas com um soneto e com a sua chave de ouro, que não me está a sair bem – apenas um momentâneo problema de falta de inspiração.
Ele costuma chamar em frente à minha casa e fica a aguardar que alguém lhe responda. Levantei-me e saí porta fora com um ar meio enfadado.
Ele viu-me e fez-me a pergunta costumeira, apenas com pequenas variações:
- Então Manel, tens aí alguma pinga?
A variação é essa mesma: Ele nunca tem um nome fixo para me chamar (pelos vistos hoje, para ele, chamo-me Manuel).
- Olha, Luís! Vens em má hora: Estava a ver se dava a volta a uma poesia...
Ele não se desarmou ante aquela inusitada expressão e questionou com os seus olhos pequenos, tão lúcidos e ao mesmo tempo tão inocentes:
- Pois ias, aonde?!...
- Nada!... É uma coisa que não compreendes...
- Mas, ouve lá: Isso é coisa que se beba?!...
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03.03.2012, Abílio Henriques (Henricabilio)
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NOTA: O presente texto foi escrito menos de um ano antes da trágica morte do Luís, na sequência de atropelamento, e é absolutamente genuíno, provando que a realidade é muito mais criativa que a imaginação.
PS: Ao contrário do que os comentários recebidos sugerem, este não é um texto triste - antes pelo contrário - e possui um elevado grau de humor, a roçar o surrealismo.