A biografia possível

Estou sempre lidando com biografias. Mas com biografias de gente morta há muito tempo, há tanto tempo que normalmente já não existem herdeiros identificáveis – ou então sou eu mesmo que os identifico, pois eles ainda não se sabiam herdeiros. Isso porque em geral são mortos de pouca ou relativa fama, ainda que participantes na construção do ambiente em que viviam. O esquecimento dos nossos mortos mais remotos permite que eu reconstrua parte de suas histórias sem enfrentar os constrangimentos causados pelos familiares de cadáveres recentes – ou pelo próprio cadáver, quando vivo. Não significa que essas pessoas tenham perdido o direito à privacidade, apenas que, na busca pela verdade documental e passível de interesse, já não há a interferência, até certo ponto compreensível, dos laços afetivos. É quando se pode fazer História.

Essa comodidade não torna menos trabalhosa a atividade do biógrafo, que continua tendo as mesmas obrigações quanto à veracidade das informações e ao respeito pelos personagens que menciona. Esse cuidado talvez precise ser ainda maior, considerando que já não há testemunhas para comprovar ou desmentir pontos obscuros na trajetória de alguém. Toda afirmação precisa estar amparada em uma fonte, que pode muito bem vir a ser desmentida futuramente. Mas naquele momento ela representa tudo o que se sabe a respeito de um tema. E assim, com todas as incertezas e o vazios provocados pela distância do tempo, cria-se o esboço de uma vida.

A julgar pelos recentes posicionamentos de artistas, este talvez seja o único tipo de biografia possível. Quando Caetano Veloso e Chico Buarque forem desconhecidos artistas de um século há muito ultrapassado, alguém escreverá com maior isenção sobre a vida deles, sem a preocupação de lhes ser agradável. E, se assim for, esse biógrafo possivelmente mencionará que no distante ano de 2013 estes personagens decidiram ter para si o controle de tudo o que se dissesse sobre a vida deles.