A Alheira

Hoje deu-me para a gastronomia, não para falar num prato em particular, mas num produto que desde sempre teve e tem uma primordial importância na alimentação; os enchidos.

Nasci numa aldeia perto de Viseu, onde naquele tempo a subsistência rural obrigava que todas as casas tivessem animais domésticos, com que trabalhavam os campos, se faziam queijos, manteigas e carne para durante o ano se alimentarem.

Todos os animais eram importantes, mas um é obrigatório realçar. Um animal que durante a sua vida pouco ou nada dava nas vistas era sem sombras de dúvidas o porco, no entanto, era do ponto de vista gastronómico, o mais importante. Este animal era duma riqueza sem igual para aquelas gentes. Durante perto de um ano era alimentado com restos das refeições, lavagens (uma espécie de sopa grosseira), legumes e farinha de milho. Um mês antes de o matarem, era-lhe servido milho em grão e outros mimos como complemento da sua dieta, o que tornava a carne mais gostosa e suculenta.

O dia da matança do porco era para casa um dia de festa, eram convidados parentes e amigos, que ajudavam no amanho do animal. As mulheres assim que o animal era aberto, eram num ver-se-te-avias, correr a lavar as tripas, temperar e preparar o sangue para as morcelas. Porque à noite ao jantar já se servia uma ou duas como prova, enquanto as restantes iriam para o fumeiro.

Não me vou adiantar muito mais na desmancha do porco, como se iriam separar as carnes para o governo do ano, nem nos diversos enchidos, como chouriços e chouriças, paios, linguiça, o buxo, o presunto etc. Nem da riqueza dos temperos de então. Vou antes falar do que a inteligência humana era capaz nesta luta pela sobrevivência, e para a evidenciar vou falar da alheira.

Quem é que já não provou esse maravilhoso enchido, frito ou grelhado com batatas fritas e um ovo estrelado? Trata-se de um prato muito económico, agradável e servido em qualquer restaurante.

Para contar como apareceu a alheira, temos que recuar no tempo e situarmo-nos em Espanha em 1355, onde 12.000 judeus foram mortos, vítimas de perseguição religiosa.

O medo dos judeus aumentou com o início do que viria a ser uma das maiores vergonhas da cristandade, a chamada “Santa Inquisição” (1478) em Espanha.

Correndo perigo de vida, muitos se converteram-se ao cristianismo, enquanto outros se refugiaram em Portugal, mediante um pagamento e por um período de 8 meses.

Como ao fim do prazo de permanência, os judeus não conseguiram sair de Portugal. O rei ordenou que fossem vendidos como escravos, as crianças entre dois e dez anos foram tiradas de seus pais, baptizadas e levadas para colonizar as ilhas de São Tomé e Príncipe, recentemente descobertas pelos portugueses.

Com a subida ao trono de D. Manuel I, os escravos foram libertados, mas devido a pressões de Espanha e da rainha sua esposa, mediante contrato estipulado na altura do casamento, deu ordem de expulsão a todos os hereges ou como alternativa a conversão.

Aos que ficaram e a outros que entretanto chegaram, não lhe restou outra hipótese senão a de se converterem ao cristianismo. Sendo conhecidos como cristãos-novos, marranos ou cripto-judeus (O termo cripto-judeu refere-se aos judeus que praticavam sua fé e seus costumes em segredo, por receio de perseguições religiosas). A situação piora, com incrementação da inquisição também em Portugal.

Quando a Inquisição iniciou a perseguição aos judeus portugueses, estes viram-se na necessidade de se converter ao cristianismo, adoptando os seus costumes, pelo menos a fingir. Então, para não darem nas vistas também eles faziam o seu fumeiro de enchidos, em tudo semelhantes aos dos portugueses.

Como o Judaísmo não consumia carne de porco, em virtude de esta ser considerada "impura", os nossos cristãos-novos, viram-se na iminência de inventar um enchido semelhante aos chouriços.

Criaram então a alheira, enchido no qual a carne de porco era substituída por uma extensa gama de carnes, que incluía galinha, peru, pato, perdiz, coelho, vitela, que depois de envolvidos por uma massa de pão, que lhes conferia consistência.

Pese o facto de actualmente ser fabricada industrialmente e também se misturar carne de porco na sua confecção, ainda há quem a faça só com carnes de aves, que quanto a mim, para além de ser a receita original é muito mais rica quer pelas carnes quer pelo sabor.

Hoje em dia a alheira é um dos mais afamados ex-libris transmontanos. Lá diz o rifão: "A necessidade faz o engenho".

Lorde
Enviado por Lorde em 17/10/2013
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