BIOGRAFIAS. PROIBIÇÃO, POLÊMICAS.
Entidade representativa dos produtores de livros move no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando os dois artigos do Código Civil que impedem a publicação sem a anuência prévia dos biografados ou de seus herdeiros.
Para a Anel, as normas atuais violam a liberdade de expressão e o direito à informação.
É arguído que há enfrentamento das regras cíveis ao princípio universal e constitucional marcado também em nossa carta política sobre o livre direito de expressão.
Um movimento de artistas intitulado “Procure Saber” é contrário à comercialização, e não à publicação, das biografias, dizem. PARADOXAL!
As biografias por óbvio, são colocadas no mercado para serem adquiridas, comercializadas. Está claro e vivo que o interesse é econômico.
Ora, em nome do interesse econômico pretender interditar a liberdade artística raia pelo absurdo, é fazer digressão primeva das conquistas de liberdades públicas. Se houver na obra, entenda-se, coisa simples, violação de direito de privacidade, de intimidade, ou qualquer outro direito de personalidade, a própria lei mostra o caminho a seguir, o judiciário além de recolher a obra, a produção artística entronizada no mercado sob a tutela da livre expressão, arbitrará a indenização cabível pela violação.
NÃO SE CUMPRE DIREITO VIOLANDO OUTROS, SERIA A DIDÁTICA DO ERRO. E NÃO HÁ CONFLITO APARENTE DE NORMAS, ABSOLUTAMENTE NENHUM.
Nada existe de ausência de normas (ANOMIA) sob esse ângulo necessitando regular, como vi ontem ventilado e afirmado precisar de discussão em programa de mulheres, pela integrante ao que parece liderando o grupo de artistas contra a liberdade em biografar. Não há conflito aparente de normas, muito menos conflito. E não há hiato legal a preencher.
A ausência de normas estaria somente em aprazar tempo razoável para desaparecidos biografados entrarem em domínio público.
Reporta a mídia esse aparente conflito entre dois direitos basilares; o de privacidade e o de expressão, tudo com base nesse contexto. Se reflete em biografias não autorizadas. Pretende-se fazer renascer a censura, emergindo de uma das espécies de expressão de molde a abrir caminho para sepultar outras em gênero. Evidentemente não prosperará.
O próprio judiciário em sua atividade foi e é questionado na interferência sob este aspecto que motivou artigo meu publicado aqui a pedido de estudantes e reedito abaixo, com similaridade ao casuísmo angulado e disponível em bibliotecas dos tribunais superiores.
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Monografia publicada no Volume 10, número 38, fls.285/289 da Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, EMERJ, em julho de 2007.
DIREITO DE PRIVACIDADE. LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
Aflora ao debate, momentosamente, o aparente conflito entre dois direitos basilares; o de privacidade e o de expressão. Este em função daquele estaria sofrendo restrições ameaçadoras de sua liberdade constitucional. Ao credo de muitos a pratica da censura, impositivamente vedada, está sendo exercida. Neste confronto desenha-se o conteúdo da discussão. Quem exerce, se exerce e porque, a nominada censura, configura o substrato e razão maior do presente trabalho, motivado pela incessante busca científica.
A sistematização dos direitos individuais, de forma alguma, sob pena de ineficácia, definiria e garantiria direitos excludentes. Ocorreria sua frustração, a didática do erro, logo que o direito existe para realizar-se. A dogmática que elaborou, construiu e criticou, antecedentemente à codificação, os direitos elencados e sustentados na cidadania, o fez sob fundamento do valor pensante mais alto do processo legislativo; a crítica.
Nessa caminhada acadêmica não seria permitido enxergar a árvore sem ver a densa floresta que se projeta nos direitos de personalidade, enfim, nos sagrados direitos individuais que alicerçam a nação.
O direito à privacidade, que condensa as espécies tuteladas no artigo quinto, inciso X da Constituição Federal, protegendo o estatuto pessoal do cidadão relativamente à sua vida privada e personalidade, caracteriza-se por ser somente ele o árbitro de quando e como poderá se ter acesso às suas informações, corolários de sua individualidade, sacrário inviolável de sua personalíssima existência. Evidentemente, sendo um direito inerente à vida do cidadão, embora não figure no caput da norma, é dele um desdobramento. Englobados por essa rubrica, privacidade, concentram-se como direitos conexos à vida, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. A violação desses valores humanos gera punição, que a norma constitucional híbrida , desse passo, apena pela via do ressarcimento pecuniário, apurados os danos morais e materiais consequências da violação.
O direito de livre expressão, com abordagem múltipla em possíveis externações, configura amplo espectro. Assim, mandamenta o artigo quinto; inciso IX da Constituição Federal, serem livres as expressões intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, sem que possam sofrer qualquer censura prévia. Egressa da formação do processo da natureza, onde evidentemente se insere o homem como seu ser mais perfeito e do sucesso da personalidade humana como produto e criação da história, a livre expressão galgou patamares superiores pela ampliação do domínio do ser humano sobre a natureza, harmonizando também com proveito as relações sociais.
Estão posicionados, sem nenhuma digressão histórica maior, que comprometeria o fundamento da monografia, face à exaustão dos limites, os direitos em embate.
A garantia da livre expressão, tem como destinatário o direito coletivo a que se dirige, onde se insere o direito individual de cada um de recepcioná-la , seja de etiologia intelectual, artística, científica ou de comunicação. De ordem restrita quanto às três primeiras manifestações e ampla referentemente à comunicação em geral; art. 220 da Constituição Federal. Em qualquer desses direitos a possibilidade da coexistência com o direito de privacidade é viável, admissível, desejada e legalmente correta. A fronteira que divide a razão da pacífica convivência é a ordem pública. Nesse divisor de interesses, outro direito desponta como garantidor e harmonizador de todos os direitos; o de que não “se excluirá da apreciação do judiciário lesão ou ameaça a direito”, explicitação contida no artigo quinto, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Se direitos constitucionais fossem legados à sociedade, principalmente os individuais, para lançarem-se em testilha, sem condições de compatibilização e convívio, voltaríamos ao tempo da barbárie, onde o livre arbítrio era padrão de conduta. Com o humanismo e a revolução francesa, precedida pela americana, por princípios oriundos desses movimentos marcados para toda a posteridade, o Estado se tornou depositário das liberdades frutos do livre arbítrio, para através do direito positivo, principalmente quanto às regras imanentes ao cidadão, buscar a harmonia social e o bem comum. Qualquer desvio dessa finalidade estaria sujeito ao judiciário para prevalência e reposição do conhecido e acatado estado de direito.
Em razão dessa conquista do homem organizado socialmente, onde a integralidade do bem comum nunca atingiu razoáveis e expressivas proporções, não seria civilizado nesta quadra da existência do Estado, entendido como nação políticamente organizada, e das corporações, voltar ao demérito e desvario da negação do direito.
Assim, para salvaguarda legal dos direitos, principalmente os individuais, o limite da liberdade para sobrevivência dos mesmos, sem comprometimentos, havendo aparente conflito, é a ordem pública, que desponta altaneira e intransponível, democraticamente definida pela sociedade através de suas leis de regência, legitimadas na representação popular. Se há ameaça ou violação de direitos garantidos, interfere o poder competente para harmonizar o desequilíbrio instaurado, restabelecendo a higidez da relação ameaçada ou violada. A máxima notória e comezinha de cessar um direito onde começa outro, incide nesse casuísmo com ficta aparência de conflito.
A livre expressão é irmã da privacidade, tanto filosoficamente, entendidos tais elementos humanos como a interpretação hipotética do desconhecido ou do inexatamente conhecido, como juridicamente, regulados como direitos de personalidade. Isto por fundamento singelo e de fácil aferição, que tomba sob os sentidos do homem medianamente inteligente. O direito de expressão nasce da reflexão e de profunda indagação da inteligência, tecido na privacidade do talento, na intimidade absolutamente exclusiva da personalidade, que se manifesta de forma plural pelo intelecto, na senda artística ou científica, agigantando-se ainda no poder da comunicação, esta aproximando os povos e fazendo a simbiose dos espíritos. A raiz desses componentes da existência do ser humano única e uniforme, explica-se na transcendência da individualidade em seus vários fenômenos que desafiam historicamente a humanística no curso dos séculos, alargando-se para além das previsões acanhadas que o homem lança para o futuro. A aspereza da interpretação, na apequenada percepção humana, sempre trôpega para sinalizar os melhores preceitos que trariam harmonia social e felicidade humana, sucumbe diante da vastidão dos próprios e valiosos questionamentos, quer filosófica ou juridicamente, induzindo dificuldades que por vezes geram o enfrentamento dos dois valores, repita-se sempre, aparentemente antagônicos; privacidade e livre expressão.
A semente que se multiplica e germina sob a mesma raiz, do mesmo gênero, não pode em razão da lógica, que estuda e pontua todas as ciências, ser diversa em suas criações. Não é possível, portanto, estabelecerem antinomia, direitos de personalidade, individuais, fundamentais, egressos do mesmo processo dogmático-legislativo.
Na equação que adiante se propõe, constata-se com clareza a ilogicidade do aparente confronto .
Afirme-se que se intelectualmente, artística ou cientificamente é invadido o direito à privacidade de um cidadão, diga-se, por meio de um livro, uma peça teatral ou por força de descoberta científica e ainda por órgão de comunicação, nessa destinação coletiva - assegurada pela constituição - a que se dirigem essas manifestações do pensamento, da personalidade, embrionário na livre expressão individual, está também o direito violado de quem tem, concomitantemente, o direito de recepcionar a manifestação da livre expressão; artigo quinto, inciso IX e 220 da Lei Fundamental. Qual o direito maior? Qual direito interessa preservar? Aquele que o lesado em sua privacidade tem direito a recepcionar ou o que ao mesmo tempo, isocronicamente, invadiu sua privacidade? Estamos em que o limite está na ordem pública, iteramos sempre.
Fica patente a inexistência de confronto e a evidente cogestão de direitos de personalidade assemelhados – individuais - por óbvio, originários que são do mesmo tronco, do mesmo corpo. Embutido no direito a receber a livre expressão, dirigência e destinação coletivas, estaria o direito violado. A livre expressão, intelectual, artística , científica e de comunicação é ambivalente. Convivem o direito de se expressar, personalíssimo, e o direito coletivo de conhecimento da expressão, ambos - externação e recepção - com privilégio de serem livres, sem censuras de qualquer natureza.
O objetivo da presente monografia, deflagrada sua feitura visando o pensamento acadêmico tem finalidade específica. Se dirige a magistrados, cerne maior do conflito interpretativo, bem como jornalistas e ao debate em geral. Primeiramente, desnecessário dizer, existir especificidade no propósito, relativamente ao direito de informação originado na mídia – comunicação - com a possibilidade de seu esvaziamento, face ao direito à privacidade, havendo interferência do judiciário na prestação jurisdicional, quando retira por força de sua função, o direito de todos à informação, por entendê-la lesiva ao direito de privacidade. Estaria o judiciário exercendo poder de censura defeso na regra constitucional. Este o cerne da polêmica. Aqui o ponto nodal, a essência a demandar estudo, pesquisa, necessária e exaustiva abordagem por todos que cultuam as liberdades democráticas.
Sem a definicão e consequente garantia da ampla e livre prática dos direitos fundamentais - perenes e chancelados de pétreos, porque imodificáveis - de forma a permitir a coexistência dos mesmos sem embates ou conflitos em que se neutralizem ou se neguem, resvalando para a inércia da impossibilidade de movimentação, ausentes do virtual estado de defesa que os assegura, de nada valeria o sentido da representação ou a vontade soberana do sufrágio popular, que todos os povos com lágrimas e sofrimentos construiram envoltos em luta.
O direito constituído e proclamado como imperativo, tem origem na luta pelo mesmo, “a luta pela existência é a lei suprema de toda a criação animada; manifesta-se em toda a criatura sob a forma de instinto da conservação. Entretanto para o homem não se trata somente da vida física, mas conjuntamente da existência moral, uma das condições da qual é a defesa do direito. No seu direito o homem possui e defende a condição da sua existência moral. Sem o direito desce ao nível do animal”, conforme deixou certo Rudolf Von Ihering. (1).
Nessa caminhada construtiva das nações, no curso da história, o vértice maior é o ser humano, princípio, meio e fim de todos os direitos com sua inexcedível personalidade, nutriz maior e mais nobre dos direitos essenciais, onde figuram com destaque a privacidade e a livre expressão, direitos fortemente ligados pelos traços pessoais do homem.
Ainda no século XVIII, definia Kant a personalidade como sendo “a liberdade e a independência diante do mecanismo da natureza inteira, o que eleva o homem acima de si mesmo”. (2)
Pode-se assim, sem esforço pragmático, considerar a personalidade como um microcosmo estratificado por três espécies de fatos ou de fenômenos - biológicos , psíquicos e sociais ; a primeira corresponde à evolução filogenética do homem-espécie; a segunda à evolução sociogenética do homem sociedade; a terceira e última à evolução ontogenetica do homem-indivíduo, em que ele adquire , em proporção ou concomitantemente com o grau de heterogeneidade do meio social, características singulares de caráter, de emotividade, de imaginação, de inteligência , atingindo a personalidade seu mais alto nível no homem de gênio.
Esses predicamentos inerentes à ontogenética, que em variados graus vestem a personalidade de maiores ou menores dotes, interessam exclusivamente ao estatuto pessoal de cada cidadão e só a ele é dado dispor quanto à permissibilidade de acesso ao cofre que encerra sua privacidade, sendo um cidadão comum. Na medida em que se põe ao pleito de cargo público e pretende sua investidura, a ontogenética fica ligada visceralmente ao aspecto sócio-genético. Sua personalidade não interessa exclusivamente ao seu círculo restrito onde expõe sua ontogenia; interessa a todos pelo sagrado direito de representação.
Sabe-se que recentemente, homem público recorreu à justiça com a finalidade de inibir publicidade de gravações que exporiam sua privacidade. O Poder Judiciário protegeu esse direito e proibiu divulgação de fitas onde o direito de personalidade figurava. Haveria censura nesse ato judicial? A indagação atravessa cátedras e desafia personalidades do mundo acadêmico. Juristas e jornalistas declinam convicções.
Prestar jurisdição , em hipótese alguma, é exercer censura. Não se pode retirar do judiciário a função de exame de lesão a direito. Em posição contrafeita admitir, seria prestigiar a derrocada das instituições, com comprometimento do próprio regime democrático, que serve com abrangência e de forma maior à comunicação. Publicistas de nota, nacionais e estrangeiros, sem cisões ou desencontros, unanimemente, visibilizam na função judicial a mais excelente do Estado, e o fazem porque no topo da pirâmide social está o objetivo máximo dessa formação doutrinária – o ser humano. A razão conceitual está em que sem sua atuação, todas as outras funções resultam inermes, sem armas para subsistirem ou fazerem prevalentes seus ideários. Portanto de imensa desvalia sustentar a não interferência do judiciário, havendo ameaça ou violação de direito. Seria a introdução ao caos social, a permissividade e ruína de todo o universo jurídico, pois se direitos máximos – de personalidade - ficam ao desabrigo de seu garante - o Poder Judiciário - direitos de menos expressão estariam lançados na vala comum do desrespeito, resultando suprimidos por falta de garantia.
Os órgãos de comunicação, todos, responsáveis que são, devem recusar a liberdade a qualquer preço, nunca proclamá-la, devendo submeter a consciência ao valor desse preço, perguntando-se se ele não seria o afastamento por insurreição, de sua própria liberdade, já que as liberdades em sua universalidade não mais estariam garantidas pela função estatal que as garante. Reiteramos , portanto, antes da negação açodada de qualquer direito, por conflito aparente com outro, o direito irrecusável que rege todos os outros interesses, de ver garantido pelo Estado, o direito de exame de lesão a direito, seja ele de que natureza for.
Sem esse norte que é o grande abrigo de todas as liberdades - garantia das normas que regem o convívio social - sucumbem todos os interesses preservados e tutelados pelo direito positivo.
Pode-se dizer que o exercício arbitrário das próprias razões, sem nenhum respeito ao interesse de todos, legislado pelo Estado, seria, aí sim, o exercício da censura de uns aos interesses de todos. Esta ambiência indesejada não interessa a ninguém, muito menos aos órgãos de comunicação, guardiões tradicionais das liberdades.
A liberdade tem limites. A resistência à opressão e ao arbítrio da autoridade é a lei. Por ela e com ela quem se expressa deve se conduzir com responsabilidade. Ninguém desconhece, sendo relativamente informado e educado, como próprio em quem exterioriza pensamento ou convicção intelectual, que direito e dever são virtudes especiais de um mesmo simbolismo objetivo nascido da vontade social; elementos objetivos de uma mesma norma de conduta.
Se de um lado não se pode pregar qualquer liberdade sem limite, a ponto de neutralizar função estatal que disciplina a sociedade como um todo e interfere quando em desacordo com as leis, também não pode o cidadão que pretende exercer cargo público, tornar distante e de difícil acesso as informações quanto a sua personalidade e a sua própria privacidade, devendo necessariamente abrir seu estatuto pessoal ao conhecimento público, pois o interesse público ele se propõe gerir e conduzir.
Sob esse aspecto convivem os dois direitos; um com regras definidas, liberdade de expressão, outro sofrendo de anomia – ausência de norma - necessitando normatização. Impõe-se ao homem público ou àquele que pretende investidura em cargo público, tratamento diverso do que se dirige ao homem comum, relativamente à sua privacidade.
Quanto ao excesso na liberdade de expressão em suas múltiplas formas, para o que excede a liberdade, já encontra nas leis de regência barra enérgica que se pode movimentar quando violado ou ameaçado o direito. A ameaça pura e simples já pode ser cortada em seu nascedouro. Não afastada premonitoriamente, a Constituição pune a invasão da privacidade, quando violada. Entendo ser necessária a interferência do judiciário de forma a evitar a consumação da lesão à privacidade do homem comum, o que não é aceitável para o homem público em elementos a serem definidos. Uma coisa é evitar a lesão, outra é a mesma se realizar e após ser ressarcida. Notável escritor francês, afirmava, “caluniai, caluniai, caluniai, alguma coisa sempre fica”. O estigma pode ser evitado antes que a invasão que denigre se consume. Este o casuísmo para a privacidade do homem comum, que deve ser respeitada em qualquer sentido, abrindo-se sua privacidade somente através do judiciário, em casos próprios – indício criminal – como autorizam as leis e os procedimentos compatíveis.
Para aquele que pretende exercer cargo público, a privacidade não deve ter a mesma inviolabilidade assegurada ao homem comum. Todos os atos de sua vida privada, que se confunde com a pública e com ela estejam indissoluvelmente ligados, não devem estar protegidos da inviolabilidade plena como a do homem comum.
O homem público estará administrando o interesse de milhares de cidadãos e sua personalidade, integralmente, deve ser conhecida por aqueles que por ele serão conduzidos. Existem hoje pequenos traços dessa exigência desejável, como a ciência do patrimônio dos que se investem em cargos públicos .
Aos magistrados, a Lei Orgânica da Magistratura, impõe, em seu artigo 35, inciso VIII, “São deveres do magistrado: Manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”.
Está patente que a conduta irrepreensível na vida particular, dever do magistrado, de certa forma abre seu estatuto pessoal, sua privacidade , ao conhecimento da sociedade. Exige dele a lei, manter-se em total consonância com os mais altos princípios éticos e morais.
Demonstram os magistrados espontaneamente, o que é visível a todos, essa postura em suas vidas particulares.
A fronteira diferencial entre o homem comum e o gestor da coisa pública, define-a a Constituição Federal em seu artigo 37, quando trata “Da Administração Pública.” Imperativamente e não dispositivamente, logo que usa o verbo obedecer, dispõe o legislador, “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União , dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, de impessoalidade, moralidade, publicidade ..”
À frente da administração pública está o administrador público, que deve pautar sua ação lastreada no respeito às leis – legalidade – de forma impessoal – impessoalidade – com rigorosa atuação dentro dos padrões morais – moralidade – dando absoluta transparência aos seus atos – publicidade.
Ressai clara a ligação dos princípios a que deve estar obediente o homem público, por força da regra constitucional, com a vida privada do gestor da coisa pública.
Habita o homem somente uma moralidade, indissociável em sua ação quer pública ou privada. Objetivamente a moralidade é um sistema normativo de um juízo de valor.
Moral etimologicamente deriva de mos que no grego equivale a ethos , que nos trouxe a ética, tido o vocábulo como sinônimo de moral que “ é a ciência teórica dos atos individuais e coletivos, divididos em duas categorias diametralmente opostas ou irreconciliáveis : atos bons e atos maus ; benfazejos e malfazejos, honestos e desonestos”, na lição de Joaquim Pimenta. (3)
É necessário conhecer a trajetória de vida do homem público, minuciosamente, nos cargos pelos quais passou, em sua intimidade; qual a moralidade que imprimiu em sua conduta. O mesmo deve ocorrer para quem almeja ocupar cargo público. Assim, não deve e não poderia o homem público, fechar ao conhecimento do povo seus comportamentos, tanto o que ocupa função pública quanto aquele que pretende nela se investir.
Esse o objetivo que a legislação em senso competencial específico deve buscar e tornar lege lata.
Quem fecha as portas para conhecimento de sua identidade, e pretende ocupar cargo público, lacra de suspeito seu comportamento.
Valha lembrar Ghandi, em sua inesgotável sabedoria, falando em reverência às massas que liderava: “Eu não tenho mensagem, minha mensagem é minha vida”. (4)
De par com a imprescidível moralidade, a impessoalidade exigida ao homem público em sua gestão, traça também, com nítidas linhas, a necessidade de facultar publicidade à sua intimidade, pois, por claro, os atos censuráveis são clandestinos.
O afastamento do homem público dessa sinalização constitucional e o cometimento de práticas contrárias aos ditames a que está sujeito, pressupõem improbidade com perda de cargo e responsabilização nas esferas competentes. Portanto, estatuto totalmente diverso o do homem público, não correspondente de forma alguma ao do homem comum. Estas marcas indeléveis aderentes ao gestor do interesse de todos, o coloca em dimensão existencial totalmente diversa do comum dos homens.
José Afonso da Silva, constitucionalista de festejados títulos, emérito professor da USP, de seus respeitados escólios, leciona : “a probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa que mereceu consideração especial pela Constituição que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políticos (art. 37, parágrafo 4) . A probidade administrativa consiste no dever de o “funcionário servir à administração com honestidade, procedendo no exercício de suas funções , sem aproveitar os poderes ou facilidades dela decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer”. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem.A improbidade é tratada ainda com mais rigor , porque entra no ordenamento constitucional como causa de suspensão dos direitos políticos do ímprobo (art. 15,V, que já comentamos), conforme estatui o art. 37, parágrafo 4 "in verbis" : “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública , a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”(5)
Não é preciso dizer que em caso de iliquidez ou insolvência quanto aos bens do ímprobo, para reposição do erário, ou mesmo dificuldade de situá-los como ocorre de costume, arcará com o dano o povo a quem representa e que recolhe tributos.
Este o desenho irrespondível de não poder estar fechada ao conhecimento público a privacidade, a moralidade de quem irá gerenciar ou gerencia a coisa pública; do povo - publicum, populicum, populum.
Nessa logística edificada no bojo constitucional, dogmaticamente, não há lugar para dissenção, oposição ou resistências, porque as proposições legais aferidas em sistematização pela lei maior, traduzem a certeza que na ciência da lógica indica e esgota a evidência; enfim, a verdade.
E a verdade, especialmente a legal, não admite negativa ao seu conhecimento, livre de estigmas ou anátemas, limpa, sem nódoas ou vícios que ensombrem a percepção de seu valor absoluto.
Não podem instituições interessadas no desfecho da construção científica objetivada pelo chamamento à elaboração de monografias, deixar ao relento o grande objetivo da pesquisa e da dialética visadas.
Os órgãos da comunicação zelam pelas liberdades, o judiciário as garante. Extrema se tangunt; os extremos tocam-se.
Essa certeza é válida também no campo epistemológico, no criterioso exercício da ciência crítica do conhecimento. O dogmatísmo muitas vezes se converte no seu contrário; o cepticismo. Não devem as instituições interessadas permitirem tal descaminho em pretenso conflito de direitos, que antes de se antagonizarem, completam-se.
Acima de qualquer subtração da clara e definida ordem pública está a verdade legal. E ela não autoriza seu descrédito, até porque é móvel, demanda feitura permanente, estado de vigília, estando em retardo o legislador, em mora com o fato social, como se dá rotineiramente. Se o legislador não suprir a ausência de norma – anomia - ao judiciário cumpre construir jurisprudencialmente a necessidade do caso concreto, de forma a preencher o hiato legal. Ao judiciário não é facultado na ausência de regra específica, deixar de prestar jurisdição, o que felizmente inocorre e, quase sempre, adequadamente, preenche-se o vazio, fenômeno revelado através de seu ato sacerdotal por excelência – a sentença. Ao magistrado é permitido e exigido - de lege ferenda - sentenciar de molde a orientar e erigir legislação futura necessária, ainda não realizada e trazida à publicidade.
Clóvis Bevilacqua, discorrendo sobre a Lei de Introdução ao Código Civil, de sua lavra, considerou que “no silêncio da lei, o juiz funciona como revelador do direito latente, porque todas as relações entre os indivíduos se enquadram na ordem jurídica e devem ser disciplinadas por uma norma de direito.É uma necessidade social. Se a lei é a expressão por excelência do direito, o juiz é o órgão superior de sua aplicação, dirimindo as contendas. Órgão vivo do direito, não pode o juiz eximir-se de cumprir sua missão sob o fundamento de que a lei é obscura ou indecisa, porque a vida social se move sob a proteção do direito, e não se pode sustar, à espera de que o poder legislativo, que funciona periodicamente, e elabora o direito por via de discussão, esclareça o ponto duvidoso.”(6)
A reflexão delegada pelo inigualável lente, atual embora vetusta, deve induzir a imagem do magistrado moderno, que para proclamar de seu alto munus público o ideal de justiça, precisa e deve compor a legislação deficitária, ferindo-a e transformando-a se é de sua convicção e sentimento, ou esboçando-a se falta, respaldando-se no estudo sério e científico conquistado ao sabor do tempo, debruçado sobre livros, traço da vida do magistrado em geral.
Viver em perfeita unidade com a sociedade para dizer o direito, deve ser sua missão e alvo únicos. Nesse caminho eleito pela função por si escolhida, para enriquecer sua existência, deve rastrear exclusivamente sua vivência, seu pulsar de absorção dos fenômenos sociais que se avizinham e se mostram, necessitados de mudança, e mais importante, dizê-los, sem receio de censuras, logo que maturados na razão e no bom senso; na prudência enfim. Por vezes, ao seu talante, em solitária decisão, formam-se novas consciências, surgem novos valores, modificam–se casuísmos nefastos, mudam-se regras inaceitáveis até então desafiando soluções.
Na implementação dos direitos, especialmente aqueles que servem, ou por inexistentes e anômalos desservem à nação, a presença do juiz é mais do que necessária, é vital. Essa realidade se infere da própria história do direito, onde magistrados como Orozimbo Nonato, lenda viva de nosso Supremo Tribunal Federal, prestando jurisdição, legislava para o futuro, adaptando, inserindo e compatibilizando as normas no presente, aplicadas aos casos concretos submetidos à sua jurisdição.
Nada haveria de concorrer mais decisivamente para a decadência da ciência do direito, do que a não movimentação dessa possibilidade única inerente ao Poder Judiciário.
Do magistrado se espera tal postura, lastreada em sua formação jurídica, sendo esta a maior e mais importante prerrogativa que a lei lhe outorga. Essa missão se inscreve na política judicial praticada em todas as nações cultas e civilizadas.
A força dessa característica que deve compor o perfil de quem presta jurisdição , define-a Del Vecchio, afirmando “que o juiz precisa ser antes de tudo, um jurista, isto é, um homem que deve resumir e viver, por dizê-lo, a unidade do sistema inteiro, compreendido como um organismo vivo e acompanhar, digâmo-lo assim, sua seiva, quando sobe das raízes, e, com sua força animadora, se difunde pelos órgãos que o compõem.”(7)
Estamos diante da virtude da expansão lógica, que é própria do sistema, precisamente porque ele tem caráter orgânico.
A verdade legal, construída cientificamente, para supressão de vazios legais, é a verdade de justiça, onde pontifica o magistrado. Ela é incansavelmente perseguida pelos povos e febrilmente procurada de forma a trazer a inefável segurança de que todos se ressentem. Ela transmite como fim teleológico esse valor imensurável, a justiça, filha da legalidade e irmã da prudência. É tema discutido de Platão a Kant, sem muito proveito, não ficando as sociedades, ao menos, devedoras do que se alcançou como normatização positiva do direito imune a dúvidas. Nessa sistematização induvidosa, se inscreve a discussão em consideração, onde fica integralmente às claras, não comportando interrogações acerca de suas verdades, que as normas reguladoras do direito de privacidade do homem comum e do homem público não podem ser as mesmas, pela total diversidade da atuação de ambos no meio social . Esse diferencial de vivências, como exposto, tem base na própria regra constitucional, que exige do administrador público transparência na sua moralidade quando no exercício de cargo público, o que é verdadeiro para quem o pretende, valor de personalidade virtualmente ligado e indissociável ao seu direito de personalidade que se plasma em sua privacidade.
Inexistindo regra específica que estabeleça a diferença desse direito de personalidade, pontuando as diferenças entre o homem público e privado, como faz a norma do artigo 37 da Constituição Federal, incumbe e cumpre ao legislador competente, suprir a lacuna pela via legislativa.
Persistindo a lacuna sem a necessária provisão legislativa, deve o judiciário, através de seus membros, nos casos que lhes são submetidos, exarar pelo poder judicante, como faculta e mandamenta a lei, as bases diferenciais relativas à privacidade do homem público, garantindo inviolabilidade a elementos que não dizem respeito ao interesse público, e salvaguardando o direito da sociedade de recepcionar através dos órgãos de comunicação, a publicidade comportamental privada – privacidade – daquele que aspira assumir cargo público ou já o exerce.
Trata-se de imperativo de segurança para a partilha da representação que todos outorgamos, a qual não pode sustentar-se na insciência de princípios básicos de moralidade e ética que os representados têm o direito de conhecer acerca de seu representante.
Celso Felício Panza
Magistrado
Bibliografia
(1) Rudolf Von Ihering; “A Luta Pelo Direito”; pags. 46, Editora Forense, 1972, Tradução de João Vasconcelos.
(2) Emanuel Kant; “Las Grandes Corrientes Del Pensamiento Contemporaneo”, em Joaquim Pimenta, “Enciclopédia de Cultura”, pags. 274, Primeira Edição, 1955, Livraria Freitas Bastos.
(3) Joaquim Pimenta; “Enciclopédia de Cultura”, pags. 246, Primeira Edição, 1955, Livraria Freitas Bastos.
(4) Ghandi; “The Words Of Ghandi”; pags. 38, Tradução de A.B. Pinheiro, Quinta Edição, Editora Record.
(5) José Afonso Da Silva; “Curso De Direito Constitucional Positivo,” pags. 571 / 572, Nona Edição revista e ampliada, 1994, Malheiros Editores.
(6) Clóvis Bevilaqua; “Código Civil”, Volume !, pags. 84, Edição 1956, Livraria Francisco Alves.
(7) Giorgio Del Vechio; “A Crise Do Direito”, pags. 100, Orlando Gomes, “ Coleção Philadelfo Azevedo”, 1955, Edição de Max Limonad.
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