O Tempo Esquentou
“Nossos netos ficarão sem água!”. A calamidade, anunciada como uma ameaça por cientistas de traços maníacos, realça o desejo nacional por catástrofes que justifiquem nossa indiferença evolutiva. As previsões, potencializadas pela digitalização de um futuro árido, prometem um cenário caótico.
- Assalto, patrão!
- Mas que...
- Passa essa garrafinha de água, mano!
- Mas eu tenho filho pra criar... por favor...
- E tu acha que minha família num tem sede, porra???
- Desculpa... eu não quis....
POW, POW, POW
Na outra ponta da cidade, os gritos do repórter sugerem a economia total! Amparados pelo terror longínquo, porém sedutor, o povo antecipa o fervor. Qualquer chance de fazer parte da massa humana que fomenta o bem ecológico é louvável.
- Que cheiro é esse?
- Sou eu. Faz uma semana que não tomo banho.
- Credo! Pra que isso?
- Estou preparando um futuro com água para os meus netos.
- Entendi. Hum, depois a gente se fala.
- Ei!
- Que foi?
- Coça aqui pra mim.
O desespero estende-se também para os modismos ecológicos, brutalmente defendidos e com validade limitada. A mania agora é equilibrar as emissões de carbono. Justifica-se o fato dizendo que o aquecimento global é resultado da falta de equilíbrio entre o oxigênio que se consome e o carbono que se libera. No final de todo esse cataclisma teórico, o resultado é sempre o mesmo: consciência pesada.
- Tem isqueiro?
- Tenho, mas não posso usar hoje.
- Ficou doido? Só quero acender meu cigarro.
- É que eu equilibrei minhas emissões de carbono no fim de semana.
- Eu deixo você dar uma tragada.
- Hum... é light?
Semana passada encontrei meu carro submerso em outra enchente metropolitana. O odor desprezível, resultado da mistura entre esgoto, urina de rato e barro, enjoava a distância. Mantive os pés levantados enquanto improvisava um balde com o tapete borrachudo. Grande parte da água foi retirada, sobrando somente a terra crocante colada ao feltro. Fui para casa sobre o banco molhado, acompanhando os inúmeros derrapamentos e tragédias que ficavam no caminho. Uma folha do jornal do dia, usada para forrar parte do banco, me chamou a atenção. Entre algumas notícias sem importância, a mais estarrecedora se envergonhava no mosaico de letras:
Previsão do tempo: tarde ensolarada em toda a Capital.