Um aniversário


Fotografias, algumas. Sempre que desejo rever o olhar, as mãos, o sorriso ou seriedade na expressão facial recorro a elas, embora tudo isso esteja cravado de maneira indelével na memória. Mas, a voz... nada, nenhum registro me socorre, quando a desejo ouvir, uma vez mais que fosse. E como a desejo, só eu sei! Quantas vezes a ouço, no silêncio das minhas noites, ou mesmo durante o trabalho, ou andando nas ruas, ou em sonhos, quantas vezes relembro diálogos, ou os invento, e a sua voz me consola e me reaproxima do que fui. Eu fico pensando em como é incrível a memória da gente, que retém imagens de coisas paupáveis, mas também de coisas intangíveis, como é o caso do som. Onde, em qual cantinho do cérebro, ou músculos, ou veias, ou nervos, se esconde a voz dos que amamos, que o tempo não apaga? Não esqueço, não posso esquecer, mesmo que eu quisesse ( e não quero!) mas me faz falta um registro tecnológico, que me traga de volta o som real e não o virtual, tão entranhado em mim. Nunca pensei, nem nenhum dos meus, em gravar a voz dos meus pais ou do meu irmão, que já se foram. Eu não me perdoo por essa falha, por esse desleixo de afeto, por essa falta de precaução das perdas inexoráveis a que todos nós estamos fadados. Uma simples gravaçãozinha que fosse, um vídeo de festinhas de casamento ou aniversário, sei lá, onde ficasse também registrado o som além das imagens. Nada.

Foi num dia 12 de outubro a última vez em que ouvi a voz da minha mãe. E eu me lembro desse fato todos os anos. É uma espécie de aniversário dela, que comemoro. Nesta dia a fotografei, por acaso, mas não gravei a sua voz. Nem sei se gostaria que fosse deste dia o registro, porque ela estava triste e não seria justo comigo e com ela que o único registro fosse de tristeza. Se eu pudesse voltar no tempo e corrigir este pecado, preferiria o dia em que eu a ouvi cantando “Dio, come ti amo’, só para mim. Eu conseguira, não me lembro como, a letra daquela música que era sucesso no rádio e que achei fantástica, mas que não entendia o que queria dizer a letra, pois não sabia nada de italiano. Ela pegou o papel e foi lendo e traduzindo e, ao final, entoou um trechinho, e eu fiquei surpresa ao saber que ela lia e traduzia o idioma que era o das suas origens e que  eu nunca havia percebido que ela podia. Me lembro claramente da minha surpresa, ao ter descoberto na minha mãe um “talento” escondido, e me lembro da sua timidez, até me pedindo desculpas por não saber o italiano erudito, devido à falta de cultura dos seus pais. Se eu pudesse, hoje, ter acesso à gravação da sua voz nesse dia,  e de tanto ouví-la, talvez escrutinasse o sentimento que decerto houve por trás daquele gesto de quase libertação de poder cantar uma canção no idioma da sua infância. Talvez eu pudesse “ouvir” por trás da sua voz, a voz da sua própria saudade. Ah!, sei lá o que eu resgataria se eu pudesse, de novo, ouví-la. É desse dia a minha melhor lembrança da sua voz, mas já me contentaria com qualquer flagrante de qualquer momento, como naquelas imagens incidentais registradas em fotografias onde não se é o foco central do evento, mas dependendo da importância que tem pra nós a pessoa, é a imagem dela que distinguimos. Uma gravação onde houvesse a voz de muitas pessoas e a dela no meio. Eu estou certa que conseguiria deslocar para primeiro plano a sua, mesmo que fosse ao fundo, quase inaudível.

Mas não há. E, mais um ano, eu comemoro este estranho aniversário. E agradeço ainda possuir memória afetiva suficiente para ouví-la, dentro do meu coração.