ÍNDIOS, BICHOS E HOMENS

“Ninguém destrói mais o homem

do que ele mesmo

porque canta em pleno amor

o ódio com que se envenena.”.

Paulo Roberto do Carmo, in “Breviário da Insolência”, 1990.

Primavera. O olho do Tempo, sonolento, levanta pestanas sobre campos derramados de malmequeres. Coaxa a água da sanga entre pedras, musgos e ramas. Um sabiá esconde o ninho sob as ramagens do arroio. O vento cicia sua antiga canção de chuva. A algaravia comemora o mutirão, a festa da colheita. Pousa o crepúsculo sobre o templo do Rio Grande. Acontece a Ave-Maria nos galpões. Nos capões de mato, cigarras e o cricri dos grilos. Voltávamos da visita às ruínas de São João Batista. Apesar de toda essa placidez ambiental de cursos d’água, o teatro da realidade se instala à luz dos círios (imemoriais) no II Acampamento da Poesia de Entre-Ijuís, neste comecinho de novembro. Pirilampos sobre cabeças, fachos de luz dançam a oralidade dos homens. Mnemósine e suas filhas, gregas silhuetas, redivivas musas, sussurram dengos e mitos no palco a céu aberto. Neste, o plenilúnio e seus eclipses. O ambiente é perfeito para a tessitura – ferramentas no alforje – mas não há jeito de fazer florir o verso... Há tristeza demais para compor belezas. E para quem é do fetiche, fazer poemas é lidar fundamentalmente com a beleza do mundo. Ou o que ainda resta dela... Abro um dos meus ferramentais de amor e encontro “O Cavaleiro da Esperança”, de Jorge Amado, 1942. A esmo, os olhos viajam: “O Poeta e o Herói constroem os povos, dão-lhes personalidades, dignidade e vida. São momentos supremos na vida de uma nação e na vida de um povo. Tão necessários como o ar que se respira, a comida que se come, a mulher que se ama. (...) Nunca te enganarás, amiga, porque o povo nunca se engana. Ele sabe como é a voz dos seus Poetas, porque é a sua própria voz. Ele reconhece a figura dos seus Heróis, porque é a sua própria figura.”. Leio, releio relatos, e é sempre a mesma história: gente tratada como gadaria recolutada a campo, levada ao matadouro. Assim o Rio Grande antigo, muito antes de São Pedro, o Padroeiro. Tudo era apenas Tupã, nas pajelanças e nos conchavos tribais. Depois, aos ventos do século XVII, nada do Império, apenas a Pátria Pampa e seu agreste destino. Guaranis, guenoas, minuanos, caigangues e outras nações mascavam suas penas, mascates em campo aberto, jaguares nos capões de mato. No entanto, tudo era de bom tamanho nestes rituais telúricos. A vida era simples e a terra só tinha dois donos: o índio e os bichos. A Coroa dos Reis voltara-se pro Sul da América e os tacapes dos vassalos depositaram-se sob a Cruz de dois braços: um para o praticante e o outro para o imemorial de sofrimentos bíblicos. À frente da Companhia de Cristo, chegavam Jesus, Maria e muito trabalho nas lavouras. Os olhos da cobiça dos bandeirantes nunca viram as cruzes do Amor. Enlaçaram-se com o Demo e urdiram suas trampas... Raízes dolorosas na terra, lamentos contaminaram flores nos campos. Começava a doma dos animais xucros: gente em pelo e suas pobres crias. Tudo o que vem por diante é coisa de bichos e suas carcaças. O homem ficara de longe, aquém de sua alma, além de suas patriadas territoriais. Mortiços, os olhos e suas armas lamberam a peste. A morte se instalou soberba entre a erva-mate, o algodão e o gado provindo de além-plagas. Pedra, ferro e pólvora rasgaram acordos e tréguas. Refizera-se a vida. Somente cantos e rezas a contar as nações submissas. Já que não posso cantar flores, rumino liberdades e gritos de medo, entreverado no bandeirante, na Cruz de Cristo e nos muitos inocentes de alumbramentos da fé. Aos meus olhos atônitos, nalgum lugar destes lançantes e canhadas, a deusa Liberdade dormita sua cabeleira loira sobre os campos doirados de sol, soja e trigo. Sobre o peito de vencidos e vencedores, restaram aturdidos o cemitério, as cruzes missioneiras e a cobiça dos últimos três séculos... Um caminhão abarrotado de trigo atravessa a ponte do Ijuí-Guaçu. A ferraria treme até as cruzes do cemitério de São João Batista! O radinho-de-pilha anuncia que a Bolsa de Chicago diminuiu o preço do trigo e soja brasileiros devido a barreiras alfandegárias protetivas da economia dos irmãos americanos-do-norte. Psiu, silêncio! Há uma criança caigangue morrendo de fome na estrada...

(Missões, Cemitério de São João Batista, Entre-Ijuís, RS, 1697/2003).

– Do livro AFLUÊNCIAS: 2º ACAMPAMENTO DA POESIA DE ENTRE – IJUÍS. Santo Ângelo: Ed. Talento, 2004, p. 7:10.

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 2004/2013.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/45216