CÍRCULOS DE PODER, CICIOS E AÇOITES

O vento é um álgido açoite nesta tarde de lonjuras. A estrada à vista é uma reta imensa entre planuras, forasteiros eucaliptos e os cabelos esparramados dos arbustos. Não sei o porquê destes ventos encapelados, se o mar dorme sepulcral a quilômetros. Veículos passam – bólidos – na estrada asfáltica. O pampeiro embolsa e se rebolca sobre o lombo da estradinha de terra. O chapéu, sem barbicacho, é um burro com suas teimosas orelhas. Tenho medo de que com ele voe a minha cabeça. Aliás, a rigor, nem precisa ventar pra que ela voe. Aqui, nesta margem de estrada, onde se espera por não-sei-o-quê, floridas marias-moles – flores-das-almas –, trevos sobre as flechilhas, tudo olhar tristonho, boca seca, saúdam o visitante. Casinhas do Arraial, perto do Povo Novo. Suas cumeeiras pardas de pó sofrem há muito tempo o mesmo vento. Nem por isto são menos belas. Conversa comigo a Poesia, dama solitária de vestes rotas. A fada-madrinha sabe que é urgente a ternura. Olha-me com olhar esbugalhado uma grossa argola de ferro. Faz duzentos anos que ela está ali, presa no tronco de uma figueira. Talvez este zumbido que paira no ar seja o eco lancinante dos gritos dos escravos. Um látego perpétuo gemendo nunca mais. Que há somas de ais, de dolorosos gemidos em cada tesoura, em cada oitão da casa antiga. No forasteiro recém–chegado ficam as pálpebras suarentas de pó e o ancestral açorita, que também dorme eternamente no mar revolto das entranhas desta nesga de terra lavrada margeando a Lagoa dos Patos, onde sumiram um dia – faz muito tempo – a prosperidade agrícola e a riqueza do sebo e do charque. Tudo culpa dos ventos do poder épico. Tinham vindo por mar, em navios da velha Europa. Atracavam como ciganos e iam proseando com a ventania. Alguns vinham batidos de maresia, sal dos Açores. Traziam a bruma marítima nas artérias, pás e enxadas nas mãos. Ali bem perto, nas cercanias das Vilas de Rio Grande e de Pelotas, os céus eram luminosos de sabedoria de França. E o pampeiro assoprando a chuva forte, em tempos mudados, vendo a perdição de rumos, engasga, ao engolir um ponto de interrogação, chispando, de chofre: – Os espoliadores há séculos são os mesmos! Constroem seus círculos de poder como fossem auréolas sobre nossas cabeças! Divinizem os sobejos e eles se perpetuarão! Talvez pela rude carga de histórias, garruchas e esporas, temores, gemidos a faca e sal nas charqueadas, em meio aos rumores do vento, proscrito seja o que chega com olhos de ver. Bueno, se o gaúcho Blau Nunes estivesse aqui, diria, por certo: – Tenho visto!

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 2004/13.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/45210