Yasmim contra o mundo
Domingo depois do almoço dormia um sono tão gostoso, desses que não nos preocupamos; a barriga cheia e os ácidos graxos em ação. Sem calor nem frio, sem nada de bom na tevê e com bastante preguiça entreguei-me à aconchegante cama e ao real sono dos justos. Toda essa narrativa é somente para envolver o leitor a acompanhar e visualizar minha situação de conforto naquela tarde, onde há tempos não tirava uma soneca tão gostosa após o almoço. A sesta seria perfeita e memorável se o almoço fosse uma rabada ou algo de igual consistência. Porém, como nem todos os momentos ímpares são feitos de perfeição e rabada, contentei-me com a fraldinha na manteiga e macarrão. Dito isso, deitado e aos delírios; nem sei ao certo se sonhos tive, pois profundo estava à nulidade do momento, quando – e é aqui que realmente começa a fazer sentido esta crônica – fui tomado de assalto por um barulho assustador! Quantas exclamações houvesse quantas eu usaria para demonstrar meus susto e pavor! De terrorismo a ladrões de caixas eletrônicos, atônito tudo passava por minha cabeça.
Sem saber o que se tratava e – envergonhado confesso – ainda com pavor (comecei a sentir dor de cabeça, dor de barriga e saudade de mamãe) esperei alguns segundos pelos meliantes que viriam gritando em direção ao meu quarto. Olhei para os lados a fim de captar uma possível arma de defesa: alguns livros, uma vassoura esquecida, um estabilizador do século passado, uma foto da sogra (brincadeira, nem sogra eu tenho) ou qualquer outra coisa que pudesse dispor-me em vantagem contra àqueles... Sem nada nas mãos, na cara e na coragem (mais na cara do que na coragem!) fui: abri a porta do quarto, passei pela sala, percorri o corredor, a copa, cozinha; cheguei ao quintal, quarto, banheiro, voltei à frente da casa... e nada! Nem uma viva alma, nem sombra de alma nem quem quisesse invadir meu lar. Ainda atordoado por conta do susto e do sono, não conseguia resolver o mistério. Quando imediatamente próximo ao portão começou a subir um cheiro forte, acompanhado de fumaça e lembrança da infância. Era um tipo de morteiro, que chamávamos cabeção de nego ou malvina.
Desfeita a confusão, ouvi risos de crianças já ao longe; se abrisse o portão já não aconteceria nem o flagrante delito. Nem por isso impediu a raiva ferver o sangue e cegar a alma. Se fossem meus filhos, pensei, fossem meus filhos não ficariam impunes: cortava a mesada e o computador. Usava a vara de marmelo (que diziam ser deveras a primeira vara da infância e juventude) e obrigava limpar o prato cheio de brócolis.
Depois recordei, que até eu já fui assim. Homem centrado e sério que sou hoje, quando pueril apertava campainhas dos apartamentos enquanto descia correndo, jogava bexigas d’água na rua, provocava cachorro bravo e brincava com fogo. Ah tempo de inocência e sobretudo coragem. Hoje já não posso nem passar perto de um cachorro latindo mal encarado e acho tudo desrespeitoso; normal de um adulto responsável com dever de impor limites às crianças. Vi meninos dia desses pedalando suas bicicletas com algumas bombinhas amarradas nos pneus traseiros e congelei: quanta bravura!
Então como vem chegando o dia delas, incorporei o adulto inconsequente que não deveria ser e relevei. Relevei as risadas, a ousadia, a coragem, a inocência, a vida inteira de responsabilidades e juízos que o mundo há de impor, o vestibular, as carreiras, os casamentos que virão, os divórcios, os filhos, os filhos dos filhos. Relevei também o medo que terão do futuro por descobrirem existir um futuro e que o presente é só coisa de criança, ou serem de menos a bagunça no quarto e o problema de matemática; relevei que alguns esquecerão que cair faz parte, ou sabão e mertiolate curam quase tudo. E depois de tanta relevância já não sobrou mais ira; o que ficou foi apenas um quê de angústia misturada com saudosismo e nostalgia. E sono, muito sono; aliás, foi com esse último que me agarrei, voltando a dormir enquanto desacelerava o coração.