O Esboço da Loucura (Camille Claudell e Allan Poe)
Pediu que ela selecionasse os materiais, levasse em maleta separada os pinceis trazidos de São Paulo, do fiasco da ultima Bienal. O domingo amanheceu nublado, no local planejado havia um caminho de pedras que descia até o riacho, o galho seco com aparência de mãos esqueléticas avançava sobre a erva daninha. Pássaros tímidos se atreviam a pios isolados sob as copas de arvores verde oliva. Camila olhou o relógio mais uma vez e sentiu um aperto frio, como se o pressagio de um erro que poderia ter sido evitado ventilasse aquelas palavras que não gostaria de ouvir. Abriu a pasta de referencias que viera no banco de trás do carro, retirando um livro marrom que se lia na capa “Caravaggio” Folheara maquinalmente as páginas com cheiro de novas, mas não encontrara animo para a leitura.
Observou que o céu enegrecia suas nuvens cinzentas, e um vento gelado não se sabe de onde vinha gritando nos seus ouvidos sensíveis, seus cabelos negros desentenderam com a tiara florida e taparam seus olhos verdes, que ajudados pelas mãos conseguiram se libertar para enxergar um torvelinho que tragava as folhas secas e as cuspia no meio da água turva que não esboçava luta. No bolso esquerdo da saia longa de cordões trançados tinha a ponta de um baseado que escondera da mãe. Com dificuldades pela insistência do vento, conseguira acender e fumar alucinadamente antes das pedras de granizo que caíram com a tempestade.
“Para se ser feliz até um certo ponto é preciso ter-se sofrido até esse mesmo ponto”.
Edgar Allan Poe sibilava na sua mente, enquanto a violência da chuva desgalhava os troncos robustos. O coração sacudia de pavor, ao mesmo tempo a ação da droga tentava desligar a mente daquele instante, Camila sentia-se Camille, Camille Claudel desprezada por Rodin, esquecida o resto da vida numa casa de loucos. Dela extraiu-se o amor juvenil e a sede sem fim de criar, a inspiração inacabável que se alimentava das migalhas do mestre. Como a chuva torrencial despejava desmedida, dos olhos de Camila lágrimas jorravam sobre a transparência do linho que he cobria os seios, pequenos e claros, marcados por uma excitação covarde, uma promessa que não poderia ser cumprida. Uma barganha, agora entendida.
Os traços figurativos do painel “A reclusão” ainda estavam esboçados na sua memória, assim como o Palácio das Artes em Belo Horizonte com suas luzes e seu glamour, se eternizaria com as palavras de agradecimento aos patrocinadores que ele recitava com hipocrisia. “O estudo sobre Perspectivas” que também rendera ao agora famoso pintor entrevista de horário nobre em Programa da Globo, inclusive com elogios em grandes jornais do país, estava com os passos iniciais, todo o projeto engavetado no seu antigo quarto Atelier.
“Tudo o que vemos ou parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho”.
Enquanto Poe voltava nas convulsões inexplicáveis, Camila tentava fugir daquela camisa força que se transformara o carro, um calor que não se media um pavor insuportável e gritos de dentro de si. A foto dele no outdoor, ao lado letras fazendo ondas e chamando para a abertura da exposição, patrocinadores de nomes estrangeiros e comentários de Marchands de todas as partes do Brasil. Em um corte cinematográfico Camila se vê abraçada pelos pais e outras pessoas que a memória não consegue decifrar, está linda de vestido branco como se fosse uma das meninas de Renoir, nas mãos finas e pequenas de apenas onze anos de idade, está uma folha de papel Canson creme e o rosto da avó querida, pintado com esmero a lápis colorido.
Não fui, na infância, como os outros e nunca vi como os outros viam.
Minhas paixões eu não podia tirar das fontes igual à deles;
e era outro o canto, que acordava o coração de alegria
Tudo o que amei, amei sozinho.
Edgar Allan Poe