A LENDA DA FONTE DO FRADE                       
 
 
Ninguém soube nunca donde é que o frade veio, nem quando é que lá chegou, nem como tinha vindo, nem porquê. Sabe-se só – e isso toda a gente da ilha sabe, e soube sempre, especialmente as gentes das freguesias do  Sul – é que, no lugar que ainda hoje se chama Fonte do Frade, aparecia um frade.
Trazia uma cesta enfiada no braço esquerdo, na mão direita, um grande bordão de caminhante a que se apoiava, e chegadinho a si, mesmo a seu lado, um  cão grande, peludo e possante. O frade era capuchinho, alto, desempenado e forte, e o cão, pelas descrições que dele me fizeram, havia de ser um pastor alemão, se não fosse a cor esbranquiçada do seu pêlo.   
O local era passagem obrigatória para todos os que, das freguesias do sul, iam a Santa Cruz, o burgo mais importante da ilha das Flores, e o seu maior centro comercial, cultural e administrativo. Ia-se a Santa Cruz em todas as estações, nas bonanças e calores do verão, e nos terríveis rigores do inverno. Era longa a viagem e os que queriam ir e vir no mesmo dia, partiam a altas horas da madrugada para ir amanhecer já nos matos do interior da ilha e chegar à Vila ainda cedo. Às vezes ia-se a desoras e a arrostar vendavais e chuvadas torrenciais, para ir aviar remédios para um doente grave.
O frade  nunca apareceu a toda a gente que passava pela Fonte do Frade. Mas àqueles a que aparecia era sempre no mesmo sítio, junto à fonte donde brotava a água mais fresca de toda a ilha. Não se consta também que jamais tivesse dirigido  a palavra a nenhum transeunte, e a algum mais afoito, que lhe quisesse pôr na cesta o que restara da merenda, desaparecia instantaneamente. Há quem diga que se ouvia então um assobio, como se fosse o frade a chamar o cão, mas neste pormenor não há certeza. 
Mas mesmo àqueles a quem não aparecia, o frade impressionava. Não se passava por ali sem sentir a sua presença. Às vezes era só uma sombra, um vulto que mal se adivinhava, à borda do caminho, outras vezes era um arrepio de medo que percorria, de repente,  de cima a baixo a espinha do viajante...  Havia até jaculatórias e promessas para esconjurar o aparecimento do frade:
 
São Cristóvão das jornadas,
livrai-me de almas penadas...
 
ou:
 
se eu passar sem ver o frade
hei-de dar disto a metade...
 
Depois dizia-se em voz baixa aquilo de que se havia de dar metade, um búshel de batatas, meia quarta de feijão... e nomeava-se o pobre a quem se ia dar a esmola... ao Cachaneta... à Maria Malvina...
 
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No local onde aparecia o frade da Fonte do Frade há agora uma capelinha votiva a Nossa Senhora  das Flores.  Disseram-me que as aparições do frade tinham cessado definitivamente depois de se ter construído a ermida e celebrado ali uma missa campal pelas intenções daquela alma penada. Disseram-me também que se tinha erigido no alto do morro próximo uma cruz, mas em todas as minhas andanças por lá, a fotografar a  paisagem, nunca encontrei a referida cruz.
Quanto ao frade, também nunca o vi por ali. Não sei se  ainda aparece a alguém, ou se o exorcismo que lhe fizeram o mandou, de facto, embora. O que eu sei é que quase nunca se passa por ali a pé e o frade, se calhar, não foi capaz de se adaptar à era do automóvel e de se mostrar a grandes velocidades. 
Seja como for, quem quer que ele seja, onde quer que esteja, paz à sua alma.