Chica e os sapatinhos
As crianças quando tinham que passar em frente à onde morava Chica Lage faziam-no no maior cuidado, sempre à luz do dia, quase levitando, buscando o outro lado da rua e com o passo mais apertado. Principalmente se estivessem sozinhas. Na companhia de adultos ainda dava pra passar mais no meio da rua, calçada com pedras redondas, os pés-de-moleque.
Mas o que nenhuma criança resistia era prender a respiração e, ainda que com o rabo dos olhos, espiar na soleira da porta, ou da janela, quase sempre fechadas, se estavam ali os sapatinhos de folhas que Chica Lage mesma fazia e ali expunha.
Ela não era certa da cabeça, isso todo mundo sabia, até gente que nunca a via. Contudo, uma coisa estranha eram aqueles sapatinhos, tão
bem-feitinhos que não iam durar mais que um dia inteirinho, pois logo a folha secava. O que era certo, entretanto, é que no dia seguinte, aquele mostruário logo se renovava.
E parecia que outra coisa a Chica não obrava. Ninguém a via trabalhar, juntar as folhas com tamanho cuidado, unindo cabedal, corpo, bico e solado e eis o sapatinho apresentado.
Os mais antigos tampouco sabiam muito mais da vida de Chica Lage, a não ser que tinha um irmão, o João que muito trabalhava e pouco
conversava.
Diziam que sua loucura fora praga que um padre rogara. Os pais teriam feito alguma maldade ou uma blasfêmia, o padre agravado teria pego um punhado de poeira, jogado pro ar e lançado a terrível praga. Que só pegara na menina, poupando-lhe o irmão João.
Será isso coisa de religião? Se fô, num vô querê não.