Imagem de Arnaldo Agria Huss

O AMOR, O SORRISO E A FLOR

Assisti a um documentário pela TV a cabo com o lúdico e sugestivo nome de “Coisa Mais Linda – Fatos e Histórias da Bossa Nova”, uma produção de 2004, tendo como um dos idealizadores e também um dos produtores o compositor Carlos Lyra, autor de clássicos da MPB como Primavera, Minha Namorada, Se é Tarde me Perdoa e tantos outros, inclusive aquele que dá título ao documentário... “Coisa Mais Linda”.

É um documentário longo – duas horas aproximadamente – onde, mesmo inconscientemente, nos transportamos para uma época onde se falava a linguagem do amor, havia um sorriso nos lábios e uma flor a oferecer.

A certa altura do documentário, o compositor Roberto Menescal, parceiro musical de Ronaldo Bôscoli, e autor, entre tantas, do célebre “O Barquinho” deu um depoimento onde dizia que no início da década de 60, no auge da bossa-nova, toda a turma foi convidada a realizar um show na arena ao ar livre da PUC do Rio de Janeiro. Lá estariam, entre muitos outros, Nara Leão (a musa da bossa-nova), Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Carlos Lyra, Norma Benguel e ele próprio. Aliás, sobre Norma Benguel ele comentou que a ala mais conservadora da PUC não queria permitir sua presença no evento, visto ela haver posado “nua” para uma revista dirigida ao público masculino. De nua não tinha nada, mas para os padrões da época havia sido um escândalo. Ele não deixou claro se posteriormente houve a liberação para a presença de Norma, mas fica aqui esse registro interessante. Todos os outros artistas seriam muito bem vindos.

Mesmo antes de o show realizar-se o mesmo já era um sucesso, com comentários em toda Rio de Janeiro, havendo portanto a necessidade de dar-se um nome oficial ao espetáculo marcado para o período noturno. Daí surgiu o inspirado e belíssimo nome de “A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor”, um trecho da letra de Meditação (Jobim e Mendonça).

Da noite deste show até os nossos dias lá se vão passados mais de 40 anos. E nesses mais de 40 anos muito ficou daquela época em que vivíamos plena ditadura militar, mas existia em cada um de nós a fé e a esperança na concretização de um país extremamente justo em todos os sentidos.

Infelizmente não é o que se vê nos dias de hoje, mas é interessante relembrar que aquela foi uma das épocas mais férteis para nossa arte e nossa cultura, com uma safra de compositores, letristas, cantores, grupos musicais, escritores, digna de causar inveja a qualquer país que se diz de primeiro mundo.

Caindo agora na realidade e vindo para os dias atuais faço uma comparação do hoje com aquela noite do amor, do sorriso e da flor. Caminhava dia desses por uma grande avenida e deparei-me com o anúncio de uma festa a ser realizada na cidade e que tinha o – digamos assim – estonteante nome de “A Noite do Adultério”. Olhei uma, duas vezes, para certificar-me de que aquele era mesmo o nome do evento. Era...

Nada tenho contra essas promoções e nem contra os cidadãos prestantes a esse tipo de eventos baldios. Cada um de nós tem pleno direito de praticar seu livre direito de ir e vir, de exercer seu livre arbítrio e disso, evidentemente, faz parte o gosto por essas realizações com títulos de gosto duvidoso.

As mudanças experimentadas pelo mundo nesses 40 anos foram alarmantes. E, infelizmente, quase todas foram para pior. A violência eclodiu na sua forma mais cruel, o desrespeito se faz presente em todos os segmentos, o egoísmo e a ambição desmedida são fatores determinantes, o “levar vantagem” é expressão de ordem, a justiça só se faz presente para os mais bem nascidos, os políticos tratam seu povo com descaso e deboche, as leis dos homens estão totalmente desmoralizadas.

Informo ao leitor que não escrevi este texto voltado para pensamentos saudosistas, nem para exercer minhas tristezas ocultas com os fatos que se apresentam a cada dia. Quis apenas fazer uma simples comparação entre duas noites acontecidas neste país, com um intervalo de pouco mais de 40 anos entre elas. Na primeira venceu o amor, o sorriso e a flor... na segunda venceu o oposto de tudo aquilo que se viu e se realizou na primeira.

E no intervalo entre as duas foi-se perdendo as rédeas do bom senso, da educação, do bem ao próximo, do bem-estar e até do conceito de família.

Quem sabe ainda possamos fazer a segunda edição daquela noite memorável onde alguém colheu uma flor, abriu um sorriso e deu-a a outro alguém com todo amor que havia dentro de si.

Difícil?... Sim!  
Impossível?... Não!


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