Esculpindo umas palavras para tia Eudênia
“John, perdoe-me, perdoe-me pelo que não consigo deixar de fazer.”
A fala é de Henrietta Savernake, personagem de Agatha Christie em ‘A mansão Hollow’, um romance policial que conta a história de como e porque e por quem John Christow, amante da moça, foi assassinado; como quase todas as tramas da famosa escritora, é um livro nem tão denso, nem tão obtuso (mas esta é a opinião de uma fã). O livro também conta histórias de outras personagens, todas entrelaçadas à família de Henrietta, mas um crime é um crime. (E este texto não é uma resenha – até porque nem detenho habilidade para tanto. Sugiro a leitura do livro, simplesmente.)
Um crime é um crime... E poderia ser um crime a forma como não consigo sequer começar a escrever sobre o que quero... Ou talvez seja por não querer, sequer, lembrar...
Mas por que não devo me lembrar de – e escrever sobre – coisa tão triste? Porque é escrevendo que me torno mais humana: isso tem sido a válvula de escape de perdas, raivas, angústias e desamor, da mesma forma em que exercito humor, dignidade, alegria e perdão. Expor em prosa ou rimas o que penso e sinto me devolve o sentido de plenitude, posto que os desvios por caminhos tortos quase me esvaziam a alma. O ato – catártico – de unir racional e subjetivamente as palavras ajuda a cicatrizar as queimaduras de enésimo grau nessa dama envelhecida – que talvez nasceu comigo, mas penso que nem me pertence mais...
A cultura atual do ‘você tem obrigação de ser feliz’ acaba por exigir de nós um preço alto: podemos chorar no enterro, na missa de sétimo dia, no dia 'que seria o dia’ do aniversário da pessoa, se a família estiver reunida e qualquer um lembrar de qualquer coisa sobre a pessoa, especialmente depois de uma garrafa de vinho... Mas não nos atrevemos a chorar ‘sem motivo’. E a maioria acomoda logo: “Fulano/a está melhor, descansou do sofrimento”, como se não preferíssemos a pessoa viva e sã e alegre e ali ao lado, para abraçarmos muito, muito, demais, e nunca mais largar.
Volto a John, o morto: “Se eu morresse, a primeira coisa que você faria, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, seria começar a modelar alguma maldita mulher de luto ou alguma figura de tristeza.” Essa fala, em reminiscência de Henrietta (uma escultora talentosa, egocentrada e – dado que o amante é casado com uma conhecida sua – dissimulada) afirma a incapacidade dela de ‘sentir’ como qualquer pessoa normal: amar, perder, chorar...
Tenho me sentido como Henrietta há muito tempo - e eis a contradição: afirmei que escrevo para castrar as dores e elevar os amores, em seguida desdigo tudo, quando aponto que quase nada sinto...
Mas é que tia Eudênia se foi há quatro anos... se contar direitinho é um tempo enorme, porque presença nem se registra, mas ausência faz relógio parar – peça que, no entanto, continua a girar, criando uma espécie de funil por onde escoam as lembranças.
Nada existe para falar sobre essa pessoa que possa explicar o valor de sua presença. Nada. Nenhuma verdade ou invenção - ou intenção!, nenhuma brincadeira, nem qualquer história de heroína ou boniteza ou presteza. E eu poderia desfiar um rosário de causos, todos verdadeiríssimos e sem qualquer exagero. Ou postar fotografias dela em alegres encontros, eficientes azáfamas familiares ou eficazes atividades de responsabilidade social. Ou registrar a fala das inúmeras pessoas a quem ajudou e orientou, e o desgosto e a desolação dessas criaturas, quando ela se foi.
Nadica de nada.
Mas gostaria mesmo era que houvesse condições tecnológicas de demonstrar virtualmente – ou em papel e tinta – o cheiro de sua companhia, quando do alpendre da fazenda olhávamos juntas a chuva e sentíamos o bafo da água boa entranhando na terra... o cheiro de sua preocupação ‘tomara que seja um bom inverno, porque o gado precisa!’, o odor de outro alegre desassossego, quando comia o que não poderia, por causa dos insistentes processos alérgicos ('mas isso é tãããão bom!’)... O cheiro do talco que ‘mamãe usava, ah, saudade!’ (tia tem mãe, por coincidência feliz, avó da gente, né?)... E o cheirinho do cuscuz regado a leite com manteiga da terra... e o da tentativa da tapioca de milho, a receita perdida e o gosto antigo na boca... o cheiro do seu sono após banho e almoço... os odores dos sonhos para a família, os amigos, a cidade... e o de sua proativa indignação – aliás, o inteiro teor de sua capacidade resolutiva! E o cheiro multicor do perfume de sua alma, a mais lucidamente generosa que já vi.
Tia Eudênia era amor - acho que encontrei a palavra...
Mas há um equívoco quanto ao tempo verbal. Ainda hoje, muitos da família dizem ‘fui à casa da Eudênia’. Eu vou mais longe: falando ao telefone com qualquer de suas filhas, pergunto: ‘Está na casa da sua mãe?’ Elas respondem ‘sim’. E nada nos estranha, porque a presença do amor é fato, tanto quanto os atos que o permearam.
Então, que nem a escultora fictícia, tenho dissimulado a tristeza; quando o choque da ausência avisa (de novo, e tantas vezes) que vai chegar, invento artes, entre as quais, alegria. Para as demais angústias, me concentro em escrever sempre que preciso contornar uma curva perigosa ou fazer cataplasma em ferida... (Não quero pensar em mim como alguém capaz de chorar feito bezerro desmamado porque perdeu o amor. E, por causa do raio da educação burguesa cristã, não tolero pensar em mim como um ser incapaz de chorar porque perdeu o amor.)
Hoje foi dia diferente, porque não fiz festa. Soubesse esculpir, faria uma figura de beleza, porque tia Eudênia o merecia; podendo escrever, fiz o que sei, e porque precisei.
E peço desculpas pelo que não consigo deixar de fazer... ou ser.
* A mansão Hollow – título original em inglês: The Hollow, publicado originalmente em 1946; tradução de Vânia de Almeida Salek. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.