Xeque
Quando eu crescer quero ser caminhoneiro. Quero viajar pelo país comendo arroz com pequi, comprar laranja descascada na estrada, dormir nas paradas ao som dos veículos ao fundo atritando o asfalto e passar o dia ocupando-me entre as quintas, sextas, primeiras, segundas e marchas ré. Aí vou poder cortar o país; rodar a BR 101 sabendo que o litoral estará logo ali pertinho. Rio Grande do Sul, Santa Catarina, o Rio de Janeiro tão diferente da Bahia e as pessoas tão diferentes umas das outras. Cidades ricas com cidadãos pobres, praças feias com a beleza humana aflorando. Quando eu crescer quero viajar sem preocupações, sem o dono do frete me aporrinhando a mente e obrigando-me ficar acordado e dirigir sem parar. Até lá as estradas serão perfeitas, as rodovias sem crime, haverá adequadas condições de trabalho e eu terei tempo para pescar. Dizem que não dá.
Quando eu crescer quero ser jogador de futebol. Poder jogar pelo meu clube, desenvolver uma atividade física, representar o meu país e dar alegria ao povo. Dadá Maravilha, parece, disse uma vez que ele não podia dar dinheiro aos pobres, por isso dava alegria. Eu assino embaixo. Imagino a felicidade magna de viajar pelo mundo, vendo os estádios e os sorrisos locais. Contemplar os que torcem e tentar ignorar os que xingam. Ver o futebol como uma paixão, não somente um negócio; manter o mesmo entusiasmo dos meninos que jogam nos campinhos batidos de terra. Não iria deter-me a um patriotismo oportuno de Copa do Mundo e não confundiria amor nacional com conta bancária. Mas eles também dizem que é quase impossível.
Quando crescer quero se diplomata. Representar o meu país no mundo. Não sendo um simples burocrata à mercê da letra fria da lei. Ser o representante dos quase duzentos milhões, propagando nossa ideia de liberdade, oportunidade e democracia. Seja para os primos abastados da Europa ou os mais necessitados da África. Um diplomata pode ajudar? Claro que sim! O pensamento é bonito, mas como tenho pouca ideia da profissão – garoto que sou – penso que defenderei os homens a quem representarei. E quando digo homens digo o trabalhador que acorda às cinco e pega ônibus lotado às seis. A doméstica, o bancário, o professor, o político honesto, quem escreve e nos anima a vida, nos faz rir, canta para gente... tanta gente! E acima de tudo manterei e defenderei as cores da nossa bandeira. A ordem por base e o progresso por fim. Sem esquecer o amor por princípio, o mais importante aliás.
Quando eu crescer quero ser das artes: poeta, escritor ou músico. Trabalhar com as letras, criando a poesia nossa da rotina, contida nos bilhetes apaixonados, nas filas de pontos de ônibus, rodas de samba ou no dendê do acarajé. Escritor, descrevendo a alma, os sentimentos que se dispersam pelas noites tristes, nos infortúnios ou nas canções de adeus. Desconsertar a humanidade, mexendo e remexendo, em romances, novelas ou ensaios. E músico então, daqueles que arrancam lágrimas; um violino chorando nas tardes de primavera, um piano mostrando sua força em um entardecer de outono. Compor uma sinfonia, um choro ou um samba popular. Alimento não é só pão; alegria não é só riso. Quero ser pianista nos municipais ou nas praças de alimentação. Mas me disseram que de arte não se vive aqui, ainda mais se não for apelativa e mastigadamente de fácil entendimento. Arte é percepção, disseram, refrões balançantes e fáceis. Poesia é rima.
E aí eu desanimo, já não sei o que quero ser quando crescer. Na verdade nem sei mais se eu quero crescer. Se quero continuar na inocência da infância, acreditando na importâncias das profissões: gari, engenheiro, taxista, vaqueiro ou nutricionista. Pedreiro, estilista, barista ou açougueiro. Com tanta coisa que eles dizem e com tanta decepções que nos pregam, só me resta amadurecer, e com elas manter uma certeza: quando eu crescer eu quero ser é feliz!