O Espetáculo:
"Rodelas, foi a saudade que me trouxe aqui". O São João de Rodelas é um espetáculo no qual se vê de tudo. Começa pelo fato de que todo mundo é parente de todo mundo. Inclusive o índio. O africano também. Lá está o branquela alaranjado, raro espécime que não se cruzou no correr dos séculos, muito raro. O pretinho, preto retinto, outro raro não cruzado. E o índio sem cruzamento, raríssimo. Cara larga, cabelos pretos na mais avançada idade, finíssimos, o nariz chato, alargado... Falar nisso, o nariz do prefeito parece uma bola de fogo. E tão grande, vermelho e redondo assim não se sabe de igual. É uma bola perfeita! Ia -me referindo ao cruzamento das raças e ao espetáculo, só o que interessa aqui. Prevalece, de ponta a ponta, o moreno, do claro ao escuro e o mulato. Raça de heróis do sertão catingueiro. Lá está um casal rolando na pista de dança. Mulata ela, ele moreno aclarado. Coladas as pernas, ela mostra a bunda num Jean coladinho. E balança pra lá e pra cá. Dá para entender que ele comanda a parte. Rodam danadamente, rodopiam e rodopiam bem, rodopiam belezamente. Muitas morenas e mulatas entram na pista. Adiante um negro. Só um. Muito preto, cabelos brancos, o largo bigode, vestindo um terno branco, usa gravata vermelha. Só ele de roupa branca e só ele de gravata em toda a festa. E parece dançar valsa, sem se incomodar com o compasso de samba. Sabe transformar música de samba ou frevo em valsa. Uma coisa extraordinária. Gente branca não aparece na pista de dança. Só sentada chupando a sua lourinha.
Na mesa ao lado dois padres. O pároco local e o de Paulo Afonso, convidado para concelebrar naquela noite. Já fizeram a concelebração da igreja. Agora é a concelebração da lourinha e das mulatas. De fato, enquanto os dois bebem sentados, duas mulatas fornidas, estão em pé, ao lado, cada qual com o seu copo. - Vidona, sopro intimamente. Levanto-me e me dirijo aos vigários. - Boa noite, padres. Os dois são jesuítas, eu sabia disso. - Padres, vendo os senhores festejar me lembrei do célebre colonizador/curraleiro Domingos Sertão. O cara trabalhou bravamente. Morreu aos 97 anos. Não teve filhos, nenhum herdeiro legal. Quando foi aberto seu testamento, encontrou-se que deixava como herdeira universal, sua alma. Quis que esta subisse ao céu sem problemas. Passou todos os bens aos jesuítas - 40 currais com 40.000 cabeças de gado, desde que a Ordem assumisse o compromisso de fazer celebrar, por todos os seus padres no mundo inteiro, três missas por mês cada um destes, em sufrágio da herdeira universal, sua alma e todos os irmãos, por igual modo, rezassem cada um três ofícios, até o fim do mundo. Os jesuítas aceitaram o oferecimento, assinando o termo o Geral da Ordem. Aí parei, respirei, e fiz o arremate: - como o mundo ainda não se acabou e a ordem dos jesuítas ainda existe, essas missas e esses ofícios devem estar sendo rezados? O padre de Paulo Afonso abriu os braços e concordou: - Pois é, o senhor diz uma verdade histórica. Ainda hoje rezamos pela alma do benfeitor Domingos Afonso Sertão.
O espetáculo começa na igreja, à hora da novena. O Bené e as moças do coro. O Bené uma figura extraordinária. É o coordenador e a alma da festa. Ninguém a faria igual. Mais que isso. É a alma da prefeitura local. Assessor para assuntos culturais, comanda mais do que o prefeito. Mais do que o vice até, este que é maior que o chefe do executivo. O vice é outra figura! Alto funcionário do Tribunal de Contas dos Municípios na Bahia, cargo a que o levou o conselheiro Pateta, murmura-se o receio do administrador, de que ele cave lá em cima sua caveira. Certinho, certinho ninguém anda nunca. Daí o receio. Licenciado para o exercício do mandato, o vice está duplamente remunerado. E folgado, sem trabalho nenhum.
Ia dizendo que o espetáculo começa na igreja. O Bené, sapato de salto alto, taxas de metal no solado, vai do coro, ao lado do altar, à porta de igreja duas, três, quatro vezes, ploc, ploc, ploc, ploc. No coro as moças do canto e das orações musicadas. À porta da igreja, do lado de fora, o pessoal da entrada das oferendas e da bíblia. Orienta este, oriente aquele, o Bené vai e volta - ploc, ploc, ploc, ploc. Chega à hora das orações. A Socorro, segunda alma de tudo, vestida numa vistosa paramenta de nossa senhora dos milagres, sobe ao microfone e lê. Lê bonito, comoventemente a oração. Uma outra do coro que não se identifica bem, lê a oração dos apelos. Vem afinal o Bené e faz o elogio de São João, da festa, do prefeito. Ah sim, do prefeito, pois não. Uma perfeita e bem feita oração à grandeza do administrador. A Socorro entra segunda vez para fazer a apologia da fidelidade e da honestidade no serviço público.
Agora entra o padre para o intróito. Inicia: "introíbo et altare Dei". Aí vai intercalando missa e novena. A certa altura é a elevação das bandeiras. A Bandeira do Brasil vai puxada pelo Vice. A bandeira da Bahia pelo único ex-prefeito vivo. A Bandeira de Rodelas pelo prefeito. Muito bonito. Por aí assim, nessa homenagem à pátria, ao estado e ao município, o padre, do lado de dentro do altar, grita ao microfone: viva a São João! O povo em coro - Viva a São João! - Viva aos visitantes! - Viva aos visitantes! Viva a esse, viva a aquele. Um gaiato grita a toda voz do meio da igreja - Viiiiva a Rodeeelas! E o povo se entusiasma e responde vibrante viiiivaaa! O padre surpreendido pela intervenção, meio pasmado repete: - Viva a Rodelas. O povo, agora cheio de brio confirma um sonante viva a Rodelas.
Terminada a missa/novena, daí mesmo as pessoas saem para a quadra de esporte onde se desenrola a festa propriamente dita, isto é: o beber e comer, dançar, esbanjar alegria. Uma coisa extraordinária. Mais belo que isso só o Carnaval de Salvador no circuito Farol da Barra/Ondina. A partir da igreja, seguindo no sentido da quadra e nesta internamente, as bandeirolas pendentes, lá no alto, embalançando ao vento. Uma fartura de cores: verde, amarelo, vermelho, azul...
À entrada da praça, o painel memorizando a antiga cidade, que a Barragem de Itaparica engoliu. Bonito trabalho, boa reprodução. Reconhecem-se as casas da velha cidade, a ponto de elevar o dedo - essa é a casa de Né Justino, essa a de Sinharinha, a casa de Honorina, o sobrado da escola de Dulcina... No interior da praça as barracas espalhadas dos dois lados em toda a extensão. Primeiro as de comida. Tem de tudo: milho assado, milho cozido, pamonha, canjica, pipoca... Quanta pipoca! E o caldo de mocotó! Uma gostosura para quem está bebaço. A carne de bode no espetinho. Um sal... Vêm a seguir as barracas da cervejinha. Como o pessoal gosta da loira! Repito: Só no circuito Farol da Barra/Ondina no Carnaval de Salvador se vê festa de rua maior que essa. Como bebe a moçada!
O dia 24. A procissão, a missa campal. Os bancos da igreja postos do lado de fora, no pátio em frente à nave. Vem o bispo
Diocesano na sua paramenta solene. Segue à frente da procissão e puxa as orações. Muitos benditos, orações cantadas. O hino do São João Glorioso. Bela e emocionante a procissão. Quando se aproxima da igreja, o povo larga a fila e corre a se sentar, cada qual buscando o espaço que não dá para todos. E começa a missa cantada pelo bispo acolitado pelo pároco. As mesmas orações, as mesmas louvações, os mesmos aplausos. Já agora, na hora dos vivas, o padre, atento à lembrança do gaiato, grita um viva a Rodelas. O povo aplaude.
A festa vai acabar-se. Depois da missa uma pessoa oferece à venda as camisas da recordação. O pessoal corre cada qual a pegar a sua: "Rodelas, foi a saudade que me trouxe aqui". De fato, quando é São João a saudade bate. E vem gente de Salvador e de Recife, do Rio e de São Paulo, até de Londrina, no Paraná. Gente de Senhor do Bonfim e Campo Formoso, de Juazeiro e Petrolina, de Paulo Afonso, de Belém do São Francisco... De todo lugar. Todo mundo é parente de todo mundo, sangue dos desbravadores do século XVII cruzando-se e recruzando. E todo mundo vem matar a saudade. Não chegam as camisas para todos. É realmente a saudade batendo no coração da gente.
Dia 25 de manhã a despedida dos que vieram de fora. - Até o próximo São João! Não vai faltar, em primo" - “Até o próximo São João, primo”. Garanto que não falto, é a saudades que nos trás aqui".