Acordar
Acordou cedo neste dia. Fora dormir tarde, e, por pirraça, seu sono não foi dos melhores. O pão, como de costume, estava em cima da mesa enrolado no papel madeira de todos os dias. A mãe não estava em casa, estranhou a ausência de um bilhete pregado na geladeira, ou outra coisa que indicasse seu paradeiro. Notou isso de forma quase inconsciente: estava meio trôpega e a luz que se coava pela janelinha da cozinha não iluminava muito bem. Sentia uma tristeza esquisita. "Ânimo, Ana", disse de si para si. Era quase sete, entrou no banheiro e ligou a água quente. Ficou espiando com um olhar besta o vapor se libertando da cascata que caía. Tirou o pijama e finalmente entrou em baixo da água.
O banho não surtiu muito efeito, saiu cerca de quinze minutos depois com uma toalha na cabeça e outra lhe envolvendo corpo delicado. Trocou-se com preguiça, mas conservou a toalha da cabeça, passou colônia e foi para a mesa. Tencionou abrir a cortina da sala para iluminar por associação a cozinha exígua. Mudou de ideia. Trazia certo conforto ficar na penumbra. Tinha de sair às oito e meia para dar uma aula de inglês. Passou manteiga e comeu metade de um pão sem perceber que não tinha fome alguma. O café estava quente e forte, o café da mãe sempre fora forte. "Veja, Maria, este passarinho". Eram palavras do pai. Lembrou-se dele, morrera há um ano o pai. Chegou a pensar que tinha escutado deveras sua voz firme. Fazia três meses que não ia ao cemitério; visitar o túmulo do pai lhe consumia demasiado.
"Talvez devesse ir hoje", pensou, poderia ligar para o aluno e lhe comunicar que surgira um imprevisto, remarcaria a aula. "Não, minha filha". Dessa vez tinha certeza, escutara mesmo a voz do pai. Não ficara assustada, essas palavras vieram seguidas de um suspiro tão habitual que tal familiaridade lhe deixou segura. Não falou nada, ficou auscultando, atenta. Fez-se silêncio longo. Abaixou a vista, ficou meia dúzia de segundos mirando o pedaço de pão em cima da xícara que já não fumegava tanto. Levantou a cabeça e lá estava o pai, sentado na outra ponta da mesa. Roía um caroço de tucumã já quase sem polpa. Olhava cândido para ela. Em seguida, sem pressa alguma, levantou e chegou perto. Beijou-lhe a cabeça. Tinha o cheiro familiar de madeira seca que Ana tanto amava. "Vou dormir um pouco, minha flor miúda", foi o que disse.
Acordou cedo, não dormira muito, porém sonhara com o pai. Estava alegre, tinha aula daqui a pouco.