A curandeira

Lá a vejo novamente, a pequena garota sonhadora que mora no alto da montanha. Ela corre feliz, descendo pelo extenso caminho e cantarolando uma música que apenas ela conhecia.

O cabelo loiro e ondulado dela balançava com o vento, as barras do vestido branco estavam sempre cheias de terra, normal para uma criança de seis anos. Tocando todas as flores murchas que encontrava pelo caminho, ela sorria como se acabasse de ganhar um brinquedo. Acredito que ela nunca teve um, a pequena não tem onde morar ou o que comer, a família é muito pobre e é por isso que moram no topo da montanha, local não explorado comercialmente. Ela deve morar em uma casinha de madeira e palha sem nenhum conforto.

Órfão, nunca soube o que é comemorar o natal ou até mesmo o próprio aniversário e a única referência adulta que ela tinha era a avó doente. Ouvi dizer que freqüentemente faltava água e comida para elas e que em dias de chuva, elas se encolhiam em um canto da casa onde não tinha goteira. Ás vezes o moço da banca de frutas aqui da vila a entregava algumas maçãs das quais ela comia com gosto.

Todos os dias ela passava sorrindo pelo centro da vila e mesmo que não tivesse comida para lhe entregar, ela passava cantarolando a música de melodia própria. Saltitando por entre o caminho estreito da vila, ela sempre tocava as plantas e os animais que aparecessem na frente, a natureza parecia gostar mesmo da pequena menina pobre.

Tudo o que ela tocava ganhava vida, flores murchas abriam mais belas, pássaros voavam depois de terem tido suas asas quebradas, cachorros que a olhavam tristes, vítimas de maus tratos, cessavam o choro ao sentirem o toque da pequena.

Certa vez, eu a vi passando na frente do mercado da vila, Ela sentou no chão, ao lado de um bebê que chorava descontroladamente, ele havia sido abandonado e estava lá o dia todo sozinho, com fome, indefeso. A menina apenas o olhou e ele sorriu, ele agarrou o dedo da menina e o balançou descobrindo o mundo pela primeira vez, ela o segurou no colo e as perninhas dele balançaram com alegria, o bebê não sentia mais fome, parecia nunca ter sido abandonado. O garoto foi adotado naquele mesmo dia por uma mulher doce e jovem, ninguém havia percebido aquele bebê o dia todo ali, chorando, como era possível? As pessoas se perguntavam... A verdade é que viram, mas ninguém moveu um dedo para auxiliar a criança, nem a pessoa que vos fala. Eu sou um homem solitário, observador; não tenho a mínima vocação para a bondade, nem para ser babá.

Mas voltando a história, a garota ficou conhecida como curandeira, devo confessar que achei um nome estranho que a fora atribuído, afinal ela não curava as pessoas ela apenas via o que ninguém mais via. Enfim, várias pessoas começaram a procurá-la para curar suas enfermidades, medo, inseguranças, depressões e até mesmo solidão.

Olhando através da janela da minha humilde residência enquanto eu tomava café, observava as pessoas que passavam pela rua em busca da menina curandeira. Perguntei-me diversas vezes como aquela garota que não tinha nada, nem local descente para morar, sem pais, sem auxílio, educação ou comida, conseguia fazer tudo aquilo. Como ela levava multidões e fazia plantas florescerem? Como ela poderia dar algo às pessoas e a ela mesma faltava-lhe?

Ela era uma desafortunada de apenas seis anos de idade que carregava uma culpa grande e uma responsabilidade maior ainda. E não me refiro ao seu dom de “curar”, mas sim a responsabilidade de cuidar de si mesma e da avó doente com tão pouca idade.

Foi em um dia chuvoso então que eu entendi; ao ver um rapaz que chorava ao ter o desenho rejeitado por um profissional, ele pegou um canivete do bolso e o aproximou do braço, apertando com força, deixando uma marca. Aquele rapaz fora por diversas vezes humilhado pelo pai e por toda a família. O único pensamento que cruzava a cabeça dele era o suicídio, eu sei pelo olhar, conheço aquela expressão de cansaço, os ombros caídos para frente, a cabeça baixa, ele inspirava de maneira pesada o ar. Dolorido pela falta de carinho que a família dava e as rápidas broncas que soavam na me mente dele, as palavras do homem do qual ele havia acabado de sair da casa. Tudo aquilo o lembrava a todo o momento que ele não era nada e que nunca seria bom em algo. Tudo o que ele queria era alguém que o reconhecesse, alguém que o lembrasse que ele não era só mais uma peça insignificante daquele local, mas a única hipótese que lhe parecia plausível na vida dele aquela altura era o fim.

Enquanto ele chorava na chuva sob o desenho molhado, ela apareceu saltitante, abaixou-se como uma bailarina experiente e pegou o desenho- sorriu ao dizer:

— Desenho lindo. Quero desenhar assim um dia... Você me ensina?

Ele levantou a cabeça e a olhou partir ainda saltitando, não houve tempo para uma resposta a pequena curandeira já havia desaparecido por entre as árvores. Ele se levantou a agarrou o desenho, o rapaz sabia que criança não mentia e então ele sorriu, um sorriso largo e cheio de esperança.

Então, a curandeira havia feito novamente. A pequena garotinha que nada tinha, havia dado a alguém a coisa mais simples do mundo, no entanto era o que ele precisava o reconhecimento. Eu finalmente compreendi o sentido da nomenclatura que a designaram, curandeira. Ela havia feito aquilo o tempo todo, a garota que não tinha nada dava as pessoas o que elas precisavam, ela possuía certa inocência e amor que eu nunca havia visto anteriormente em nenhuma criança ou adulto, ela doava sentimentos. A pequena garota que nada tinha era a curandeira do mundo, deste lugar tão cruel onde todos preocupam-se apenas com os próprios problemas e fazem de tudo para ter o dinheiro em casa no final do mês. Então eu entendi que não era o mundo que faltava a ela, mas era ela que faltava ao mundo.