ROUPAS AO VENTO

Ela era linda com seus olhos negros e me inspirava um sentimento muito terno.

Joana D’Arc chorava durante o sono e aquilo me impressionava.

Ela sempre me dizia que tinha uma aspiração na vida. Dizia que almejava uma vida ao lado de um bom companheiro e desejava ter uma casa com um varal repleto de roupas se balançando. Sonhava com roupas coloridas ao vento...

Muitas vezes nós nos debruçávamos na janela para observar a rua e eu notava que seus olhos se estendiam para o horizonte. Parecia-me sempre que ela estava buscando alguma coisa bem distante.

Numa tarde estávamos na janela e ela começou a me contar sua história.

Fiquei ouvindo e confesso que não sabia se chorava, se a abraçava. Ou se me calava.

Aos 20 anos não temos muita compreensão do mundo.

Hoje em dia eu me pergunto se fiz a coisa certa, mas creio que sim.

Já houve tempo em que pensei que deveria ter ficado caladinha ouvindo-a e que era só isso que ela desejava: desabafar.

Eu a consolava abraçando-a e sentia que ela gostava muito de meus abraços.

Bem, acredito que fiz a coisa certa. Fui muito carinhosa com aquela garota e ela era extremamente carente.

Joana raramente sorria e eu sempre fora uma garota sorridente. Eu lhe passava uma ideia positiva e colorida do mundo.

Dividíamos um quarto de pensão. Na verdade éramos quatro jovens dividindo aquele diminuto espaço. Isto aconteceu nos ano 70.

Naquela época dizíamos ainda “São Paulo da Garoa”. Houve uma mudança climática e a capital paulista já não tem esta característica. Há uma explicação cientifica para isso.

São Paulo já foi chamada de terra da garoa, quando durante o outono, a cidade passava dias com uma garoa fina. Atualmente, o concreto absorveu muito da sua umidade. Além disso, a poluição ajudou a aquecer a cidade, fenômeno comum em várias regiões do planeta graças ao que os cientistas chamam de aquecimento global. Além disso, essa mesma poluição cria novos fenômenos climáticos como a inversão térmica, que aumenta a sensação térmica de frio na cidade nos dias secos.

Bem, ficávamos na janela observando os transeuntes agasalhados. Ficávamos olhando a rua; olhando a vida que parecia passar tão lentamente. Aquela garoinha dava-nos a impressão que estávamos na Europa e comentávamos isso.

Éramos tão jovens, Meu Deus! E já tínhamos passado por coisas duras. Cada uma à sua maneira.

Eu tivera problemas sérios de saúde e Joana tinha conhecido a dor de ser criada em um abrigo para crianças, o desgosto de ter perdido a família inteira.

Ela estava com 19 anos e havia saído do abrigo há pouco tempo.

Contou-me que ficara irremediavelmente marcada pela vida. Aos 9 anos sua mãe faleceu e outra tragédia aconteceu naquele dia, pois o seu pai, enquanto se encaminhava para o hospital, foi atropelado. Os dois morreram no mesmo dia e deixaram os 9 filhos.

Cada um foi para um lado e ela foi entregue ao juizado de menores.

Chorando ela me contou como sentiu muito a falta dos irmãos e dos pais. E me falou que era com grande ansiedade que aguardava as visitas, na esperança que alguma família a adotasse, mas não aconteceu e os anos passaram.

Aos 18 anos conseguiu empregar-se e estava ali morando conosco.

Imagino como deve ter sido difícil para aquela jovenzinha ter sido criada num lugar como aquele. Justamente ela que tivera uma família tão grande.

Muitas vezes lhe ofereci refeições porque a Joana mal conseguia se sustentar com o salário que recebia. Lembro que ela adorava arroz e comia-o mesmo sem acompanhamento.

Eu sempre fui de comer pouco e de beliscar petiscos. Jamais conseguira comer uma panela de arroz e admirava-a enquanto ela comia.

A Jô (era assim que eu a chamava) ficava muito agradecida porque sempre eu lhe deixava grande parte da minha refeição visto que eu era de comer muito pouco.

Logo me casei e ela costumava me visitar, até que voltei a morar no interior e ficamos por 20 vinte anos nos correspondendo através de cartas e raros telefonemas. Sempre a incentivei muito a procurar os irmãos e ela o fez. Contou-me que encontrou 4 deles. Inclusive uma das mulheres morava bem pertinho do bairro onde ela estava residindo com a sua família.

Contava-me das filhas, enviava fotografias (inclusive quando eram pequeninas e quando já estavam ficando mocinhas) e eu as guardo até hoje.

Como vou me esquecer de uma jovem que me dizia que seu sonho era ter um varal e roupas ao vento?

Senti grande tristeza quando perdemos o contato. Talvez eu esteja errada em pensar que nos desencontramos porque esta é uma expressão errônea. Nós nos encontramos quando tínhamos que nos encontrar e nos falamos enquanto havia o que conversar.

Por que resolvi escrever esta crônica? Porque guardo a Joana em mim e porque ela me falou um dia: Soninha, você não sabe o que é o egoísmo. Vive repartindo o pouco que tem comigo.

Eu dividia com ela porque era o melhor que tinha a fazer e dava-me uma sensação tão boa. Não questionava se era um gesto de altruísmo. Nem pensava nestas coisas naquele tempo. Eu simplesmente dividia o que tinha.

Hoje em dia penso que era tão pouco o que eu dava à minha amiga. Tão pouco e para ela significava tanto.

O mesmo significado deveria ter para ela as roupas ao vento se balançando porque necessitava disso. Necessitava desta sensação de aconchego. E sem conhecer a vida eu lhe entreguei isso: uma amizade aconchegante.

Querida Joana D’Arc, onde você estiver, receba o meu abraço bem apertado.

SONIA DELSIN
Enviado por SONIA DELSIN em 02/10/2013
Reeditado em 02/10/2013
Código do texto: T4507695
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