Peças truncadas, trocadas ou roubadas...
A maioria de nós monta quebra-cabeça para fazer quadro, né?... com paciência – e muita! – até que as tantas mil e trocentas pecinhas se encaixam perfeitamente na cartolina, esperando cola, vidro e moldura. E há casos difíceis, em que parecemos cegos sem tato...
Pois tenho me sentido assim sobre a recente situação social e política: ao mesmo tempo em que situações completamente inesperadas são exatamente do tamanho e forma da peça do quebra-cabeça – ainda que de cor e/ou conceito diversos – tem tanta coisa que não se encaixa!
Sem qualquer pretensão de esgotar a discussão (e, até, pedindo esclarecimentos a pessoas cuja inteligência, discernimento e lucidez possam contribuir para o cessar de tanta confusão), exponho algumas ‘estranhezas’ que tem me atazanado o juízo:
1. as manifestações em São Paulo começaram por causa do aumento da tarifa dos transportes públicos – isso é fato, e contra fatos não há argumentos;
2. aos poucos – ou de repente, de acordo com outras opiniões – a coisa cresceu, diversificou-se, a luta pela dignidade nos transportes ampliou-se para outras muitas e "o gigante acordou";
3. na maior parte dos locais os protestos viraram o que parece um 'samba do crioulo doido'. (Êpa, o termo 'crioulo' é politicamente incorreto, né? Longe de mim tal heresia, eu que até ateia sou... E samba é apenas um gênero musical - e, afinal de contas, há tantas canções simbólicas de protestos: Caminhando e cantando... Sem lenço e sem documento... Valsinha, do Chico Buarque - a minha preferida, apesar de todo mundo achar que é 'só' romântica... Ah, lelek, lek, lek, lek,lek... "Louquinha!”, o que talvez estejam pensando de mim... no entanto, lembro que nos atos recentes faltou só a bandeira do movimento antimanicomial, que, como todos, também pede respeito);
4. os governos estaduais e municipais reduziram as tarifas – o que demonstra a capacidade dos governos de descongelarem pontas de icebergs;
5. o protesto continua firme e forte, com cobertura de grandes empresas de mídia, inclusive internacionais, todos com opinião formada de que ‘há um sério problema do povo com o governo’.
Eu nunca havia visto manifestações congregando gentes com tantos interesses diferentes – uns, inclusive, bem contraditórios, como o do rapaz segurando um cartaz que pedia a intervenção dos militares no governo – esse monstrengo executivo elementar e excessivamente imperfeito, sofisticadíssimo nos processos de não priorização e de corrupção, ajudado nisso pelos Legislativo e Judiciário; os três poderes tão manipuladores entre si mesmos e do povo que os abriga que Locke e Montesquieu devem estar se revirando nas tumbas! – mas (diga-se de passagem, para que não esqueçamos!) um GOVERNO ELEITO DEMOCRATICAMENTE – e quem passou trinta anos (minimamente) sem direito de votar sabe o quanto isso é importante.
A impressão que guardo: parte significativa das pessoas protesta pelo simples direito de protestar – e eu acho isso de uma proficiência infernal (que nem a de um professor - oh, sim, eu sofro! - de Administração Estratégica que conseguiu juntar os homines sapiens e neanderthal e os dinossauros na mesma era geológica... mas se redimiu, porque “Desculpe, pessoal, não sei informar se as galinhas já existiam nesse período.”).
Finalmente, hoje tive uma luz (‘insight’, para os chiques): estava na manicure (burguesinha, burguesinha, burguesinha, burguesinha, burguesinhaaa... ora, havia esquecido ‘dessa’ canção de protesto, vejam só!), e antes do (des)Encontro com Fátima Bernardes a Globo informava tim-tim por tim-tim, ao vivo e em cores, as caras e bocas e flashes de mais manifestações pelo Brasilsilsilsilsil. No finalzinho da transmissão, fechou com chave de ouro: só e somente só ao som de ‘Alegria, Alegria’, de Caetano Veloso, a tv mostrou os movimentos de protesto na rua sob a perspectiva do alto, isto é, global.
Resta a peça desconjuntada, feito questão ‘casca de banana’ de prova: quanto custam 2 minutos e 45 segundos (o tempo total da música) de propaganda política não oficial (insidiosa?) (mascarada?) na empresa televisiva mais cara do hemisfério sul? E quem está pagando essa conta?
Não sei se o gigante acordou. A mim mais parece que sonha que está acordado, realizando ato onírico, enquanto os ladrões, fingindo medo, roubam o sonho real.
(E, do quebra-cabeça sob o tapete, o caso vai se tornando quadro, com gosma podre, vidro fosco sujo e moldura maleável...)
* Minhas desculpas aos leitores recantistas: esse texto, escrito à época das manifestações citadas, ficou esquecido no ambiente de rascunhos de minha escrivaninha (mas se até os óculos eu esqueço na cabeça!). Por gentileza, deem o devido desconto à crônica - e a minha capacidade tão rara (rsrs).