Sua última ironia
Posso vê-lo passando a mão pela cabeça, com ar de incredulidade, diante da quantidade considerável de mãos levantadas quando perguntou quem ali não acreditava na teoria da evolução. Estávamos em uma aula de metodologia científica, que na prática costumava ser aula de religião. E ministradas por um professor ateu, que tentava nos converter às sagradas escrituras de Carl Sagan e Richard Dawkins. Sempre com uma ironia corrosiva, que com frequência deixava ofendidos. Mas também nos divertíamos muito (bolas, o homem realmente era engraçado, tinha muitas histórias e sabia contar). Nenhuma outra aula prendia tanto a nossa atenção e nem nos fazia pensar como aquela. Eu mesmo, um relativista em potencial, mudei opiniões – a verdade não relativa: tenho uma cabeça e dois braços e sobre isso não paira questionamento.
Decidiu ser jornalista por dois motivos: para não precisar carpir e porque foi essa a resposta que lhe deram na fila de inscrição pro vestibular (“Eu tenho cara do quê?”). Já trabalhando, chegou a se vestir de mendigo para comprovar que a prefeitura de Ponta Grossa sumia com eles. Gostava de mim e dizia que eu era jornalista pro Washington Post, e não pra “esses jornais provincianos”. Brincava que depois da minha aprovação no TCC deveríamos festejar no Bar do Alemão – também era a sua ascendência. Um dia me emprestou a sua mãe, uma católica fervorosa que me ofereceu almoço e dizia que eu lembrava muito ele quinze anos antes.
Não voltei a vê-lo depois que me formei, e por isso também não sabia que aquele homem tão despojado e alheio às formalidades estava, aos 38 anos, cogitando se casar oficialmente. E era com a sua futura esposa que ele havia conversado rapidamente ao celular naquele dia, dizendo que era melhor desligar, porque ambos estavam caminhando na rua, e ela está cada vez mais perigosa. Em seguida, ao atravessar uma faixa de pedestres, foi colhido por um ônibus biarticulado. Sua última ironia foi morrer no Hospital Evangélico.