A SENHA
Quando fui cursar a quinta serie eu passei para um dos dois únicos colégios estaduais (na época) da cidade em que morava.
O 8 de setembro era um colégio badalado entre a garotada pré-adolescente todo mundo ouvia falar dele e todo mundo queria estudar La. Era a escola dos descolados dos rebeldes de toda a cidade. Muito mais por acaso do que por qualquer coisa eu fui matriculado nesta famigerada escola e claro senti-me o Maximo.
Meus primeiros dias por La foram cheios de espanto e fascínio tudo era novidade e tudo soava imenso e fantástico, eu estava na mais “poderosa” escola da cidade era um dos temidos alunos do 8! Mas logo tive que aceitar outras realidades! Num lugar assim obviamente as leis de sobrevivência estudantil não só não haviam mudado como eram superdimensionadas.
O que fazia de mim então nada mais nada menos que um gorducho atabalhoado e nerd em meio às feras juvenis da época! No 8 mais do que em qualquer escola mandavam os mais fortes. E naturalmente a maioria dos mais fortes era composta pelos garotos mais velhos do segundo grau, eu me referia a ele como os planetas monstros, e espalhados por todas as outras series haviam seus satélites, que eram garotos (muitas vezes repetentes, outras vezes apenas naturalmente valentões pela força e agressividade) que embora não fossem mais velhos nem do segundo ano faziam parte da turma dos poderosos e tocavam o terror em nome de seus “mestres”.
Em minha sala na época havia um destes caras, seu apelido (tirem só uma ideia) era “cavalo”, sinceramente eu nunca soube se o apelido nascera da força bruta do mesmo, da semelhança física com o animal ou do fato de que ele e o referido bicho pareciam ter o mesmo nível intelectual. Seja como for cavalo estava comigo na quinta serie e cumpria bem sua função de satélite, na ausência dos professores (e em alguns casos ate na presença deles) mandava e desmandava na sala, arregimentou logo um grupelho de 5 ou 6 garotos que pra escapar das surras e também pra ter algum poder o seguiam como cachorrinhos. Para o resto de nos o que restava era tentar sobreviver às investidas daquele projeto de gangster, e a distinta pessoa que vos escreve este relato aqui era vejam vocês o único gordinho da turma, certo então que o bom cavalo dedicava sempre um tempinho para mim. Eu tentei de tudo, ser amigo entrar pra gang, ser valente (moderadamente) e depois apenas ignorar. Mas nada deu certo e no fim só me restava mesmo tentar o Maximo possível não ficar no caminho de meu colega de alcunha quadrúpede.
Mas a questão é nem mesmo esta situação me tirara o fascínio de estar entre os “grandes do 8” eu continuava me sentindo o Maximo e com que prazer falava a outros garotos de outras escolas “sou do 8 de setembro cara”, e procurava neles (e realmente via) o respeito por ser daquela famigerada escola.
Mas dos portões pra dentro da escola a coisa não era bem assim. E eu vivia buscando qualquer coisa por mínima que fosse que pudesse me fazer sentir como membro real da elite.
Foi então senhoras e senhores que o ping pong (hoje é tênis de mesa creio eu) surgiu na minha vida. No primeiro andar da escola havia uma sala vaga e como existia uma surrada mesa de ping pong na escola a diretoria deu autorização para que fosse armada nesta sala para que os alunos pudessem usufruir dela nas aulas de educação física e nos intervalos também (na época para nos intervalo era o recreio) só que... a sala é claro era pequena e o numero de alunos grandeee demais obviamente durante o intervalo todo mundo queria jogar mas não era possível.
E logicamente os poderosos da escola solucionaram a questão. Do jeito deles, mas solucionaram.
Decidiram e comunicaram a todos que só poderia entrar na sala (já conhecida por todos como a sala do ping pong) quem tivesse uma senha que eles criaram e que seria perguntada quando o candidato a entrar batesse na porta.
Ninguém discutiu, era natural e ate inevitável que os grandões dominassem a sala, os professores não sabiam ou não ligavam pra isto, e ninguém com o cérebro bom (e algum amor aos próprios dentes) discutiria com os caras.
Eu fiquei desvairado! Semana após semana eu via garotos entrando na famosa sala nos intervalos, a maioria claro era do segundo ano, mas havia muitos de outras series que por meios que eu julgava quase inexplicáveis haviam obtido a tão cobisada senha.
Logo outra divisão clara de poder se estabeleceu na escola, os poderosos no topo e os garotos que podiam ter acesso à senha mais abaixo, qualquer moleque que tivesse a tal senha era agora membro de um subgrupo exclusivo e logicamente que não sedia este privilegio a qualquer, pois pra que dar a outro o poder que ele era um dos poucos a ter?
E eu queria demaaaaais ser um destes! Eu queria entrar naquela sala, eu precisava, não pela sala, mas pelo que significava ter a senha.
Passei a tentar de todo jeito conseguir a senha, perguntando sutilmente ou ate descaradamente, oferecendo barganhas, eu uma ocasião pensei ate em intimidar fisicamente um garoto claramente mais fraco, mas não o fiz (sorte minha, pois seu irmão era do segundo ano e certamente não deixaria barato), mas os resultados eram nulos.
Ninguém me cedia à senha, alguns ridicularizavam minha pretensão em obtela, pois o gordo nerd queria entrar na sala do ping pong? Há há há de rir!
Mas era uma obseção minha entrar naquela sala tanto que no auge do desespero procurei o cavalo (pasmem fiz isto sim) procurei ser solicito puxei papo sobre futebol (falar de gibis era inútil à criatura mal lia mesmo que obrigado) ofereci ajuda em matérias que ele ia mal (isto era assim... tipo todas elas!), mas o bom cavalo não entendeu da forma como eu queria a minha aproximação e literalmente me escorraçou dizendo que não queria nenhum “gordo” perto dele.
Bem eu já começava a desistir quando a sorte me deu uma rara bafejada, um amigo de outra turma, conhecia uma menina que era irmã de um garoto que era do segundo ano e ela sabia a senha por que o irmão falava em casa abertamente sobre o assunto com os amigos.
Este meu amigo sem qualquer relutância me passou a senha, e para minha surpresa me disse que não queria usa-la.
Eu o considerei levemente lesado quando o ouvi declarar isto, mas não pensei sobre o assunto, na verdade não pensei sobre nada. Ouvi dele a senha e me senti no céu.
Eu também tinha o poder agora! Tamanha era minha exultação que não parei nem por um instante pra considerar o que era a senha em si.
As aulas do outro dia antes do intervalo nunca foram tão longas. Eu não via a hora de poder sair e dizer minha senha entrando então para o maravilhoso mundo dos poderosos!
Quando o intervalo chegou me demorei um pouco pra sair da sala caminhei devagar sentindo o estomago pesar de medo e ansiedade, vi dois garotos entrando , esperei um pouquinho e fui ate La. Do lado de fora dava pra ouvir La dentro a algazarra as risadas e o som da bolinha batendo nas raquetes e na mesa. Com certa tremedeira bati na porta, nada aconteceu! Bati mais forte e então ela foi aberta.
Surgiu diante de mim um aluno do segundo ano que eu só conhecia de vista, era muito alto ate para sua idade, loiro de cabeça enorme parecia largo como um guarda roupa e claramente hostil lembro-me de ter pensado que não podiam ter escolhido porteiro mais adequado.
Ele fitou-me por alguns segundos (talvez um tanto surpreso) e fez a pergunta!
- O que é ping pong? – essa era a pergunta gatilho que exigia a senha (coisa de cinema! senha e contra senha).
Foi só naquele instante que percebi o quanto aquilo tudo era ridículo, o quanto era bobo e infantil.
Quase sem sentir respondi com a senha.
-Ping pong é um chicle!(na época esta marca de goma de mascar era bem famosa)
Sem dizer nada o brutamonte abriu a porta e me deixou entrar.
La dentro eu não estava feliz como achei que ficaria. A situação da porta havia me incomodado, aqueles garotões achavam-se todos no auge do poder adolescente, quase adultos, e sua senha era algo tão infantil tão idiota?
Eu estava me sentindo muito tolo e estava decepcionado, não que me sentisse mais adulto do que eles, mas esperava mais!
Fiquei La dentro talvez uns 5 minutos, tempo bastante pra ver que só jogavam os maiorais do segundo ano, os outros só usavam a senha pra ficar La dentro em pé os vendo jogar! A fachada de fazer parte terminava da porta pra dentro. Decidi sair.
Antes de disto ainda tive tempo de ver o cavalo num canto entre dois garotos do segundo ano, um deles tirou o boné que cavalo usava de sua cabeça e ficou zoando sobre algo no boné e na cabeçona do dono deste.
Cavalo muito humilde Zinho ria sem graça e tentava retomar timidamente o boné!
Então era este o poder do grande cavalo? Um mero peão nas mãos de quem realmente mandava. Pedi pro porteiro pra sair, ele olhou-me claramente surpreso, mas abriu a porta e antes que eu saísse me falou.
-Quem sai não volta mais, agora só entra de novo amanhã mesmo com a senha.
Respondi simplesmente
- Não tem problema, eu não volto mais.
Encontrei meu amigo que me dera à senha sentado num banco no quintal da escola, a me ver ele foi logo perguntando.
-Já aqui fora? Como foi a sala do ping pong?
Sentei a seu lado e não respondi logo, apenas fiquei olhando o pátio diante de nos.
-Você não perdeu nada por nunca ter entrado La!
Ele não respondeu mais nada. Ficamos olhando a correria e a algazarra das crianças ate o intervalo acabar.
Nunca me esqueci da lição que tive aquele dia, passei a me portar e a ver o meu mundo de outra forma desde então.
O poder é facilmente uma má companhia! E poder algum vale o esforço em telo quando nos afasta daqueles que realmente nos fazem bem.